Pensem nos quase 450 mil mortos de Covid-19 e lembrem-se dos respectivos desempenhos de Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello na CPI. Procurem se inteirar dos motivos que levaram o ministro Alexandre de Moraes a autorizar a operação da PF contra a cúpula do Ministério do Meio Ambiente. Pensem no palanque em favor de um golpe, armado em Brasília no sábado passado, com a presença do ministro da Defesa.
Leiam, nesta Folha, a entrevista de Mario Frias, secretário de Cultura, que viajou à Itália para a abertura da 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Ele confessa à repórter não saber quem é Lina Bo Bardi, a grande homenageada da mostra. Informado sobre as obras que ela projetou no Brasil, usou-a como exemplo do que entende ser a “alma brasileira”. Italiana, Lina só se naturalizou em 1951, aos 37 anos. Isso não é um governo.
É natural, nas democracias, que grupos e partidos se organizem para apoiar ou se opor à administração de turno, segundo os valores e o viés ideológico dos que estão no poder e dos que a eles se opõem. Há, no entanto, uma diferença entre fazer oposição a um governo dito “conservador” ou “progressista”, segundo marcos de “economia política” —expressão que precisa ser devolvida ao debate—, e ter de resistir à combinação de múltiplas expressões de delinquência.
Mundo afora, governos querem, por exemplo, taxar um pouco menos ou um pouco mais os ricos. O pressuposto dos primeiros, para ser sintético, é que mais dinheiro com a sociedade, não com o Estado, gera um maior número de empresas e empregos —e, pois, aumenta a riqueza. Já seus adversários sustentam que o modelo concentra renda e conduz a iniquidades sociais.
Ganhando a direita democrática, ou uma variante mais ao centro, esta buscará adotar medidas compensatórias para enfrentar a crítica de que não se importa com o social. Vencendo a esquerda, ou força assemelhada, o normal é que busque um entendimento com os donos do dinheiro, tentando convencê-los de que a redução das desigualdades amplia o mercado e, pois, a riqueza —aquela mesma que a direita também diz buscar. Avança-se. Ora com mais reformismo, ora com menos.
Em 2018, o Brasil rompeu com a direita, com a esquerda e com o centro. Em 2018, o Brasil rompeu com o bom senso. Em 2018, o Brasil rompeu com a racionalidade. Em 2018, o Brasil rompeu com a economia política. Em 2018, o Brasil rompeu com a ciência. Em 2018, o Brasil rompeu com o pacto civilizatório. Em 2018, o Brasil rompeu com o futuro.
Já escrevi dezenas de textos a respeito. Demonstrei em que medida a razia provocada nas instituições alimentou a crença de que haveria uma solução mágica. Mais: ela seria imposta por um ogro —ignorante e grosseiro, como sói—, mas que traria consigo a vontade genuína de acertar, livre de todos os “vícios” dos políticos. Ocorre que os tais “vícios” traduzem, justamente, as virtudes da conciliação necessária. Eram e são muitos os males a corrigir. Mas nenhum fora ou acima da política.
Na marcha rumo aos 500 mil mortos, vemos que Jair Bolsonaro cumpre rigorosamente o que prometeu. Já eleito, afirmou, ainda antes da posse, haver no país mais coisas a desconstruir do que a construir.
Observem: com sinais de uma possível terceira onda de Covid-19 —sem que a segunda tenha deixado de nos apavorar—, o Ministério da Saúde ainda não fez uma campanha nacional sobre métodos de prevenção porque, afinal, estes não combinam com as crenças do presidente e com seus próprios hábitos. E, no entanto, lá estava Braga Netto, da Defesa, no palanque golpista.
Que as forças comprometidas com o pacto civilizatório façam o possível para que as hostes da destruição não sejam nem mesmo uma das opções em 2022. O governo Bolsonaro não pode ser visto como um simples surto de incompetência a ser superado. Estamos diante da evidência de que a democracia não precisa de um golpe para morrer. Ela pode ser solapada pela irracionalidade tomada como um método.
Pode ser aterrador, eu sei, mas o Brasil contemporâneo prova que o ódio e o ressentimento são forças poderosas e mobilizadoras.
Fonte:
Folha de S. Paulo