Sistema, que vai além da escolha de governantes, está em perigo porque a paixão das facções chega às decisões de Estado
Pesquisa CNI-Ibope aponta recorde de popularidade do governo Bolsonaro. Acham seu governo ótimo ou bom 40% dos entrevistados. Apenas 29% dizem ser ruim ou péssimo. Estou com a minoria dos 29%. “Que é, Reinaldo, vai discordar da maioria do povo?” Já fiz isso muitas vezes.
Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: “Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber…”.
Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o “paredón” moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.
Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de “O Federalista”, de Madison, que trata da necessidade de preservar a “Assembleia” das paixões do que ele chama “facções” —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por “República”, que nós chamamos “democracia”, é mais do que a vontade da maioria.
O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.
Nesta sexta, o país vai superar a marca dos 141 mil mortos por Covid-19. Estamos à frente dos EUA em óbitos por 100 mil e lideramos o ranking tétrico do G-20. As praias e os bares indicam que parte considerável dos brasileiros faz a sua própria leitura de “Os Lusíadas”, de Camões. Entregam-se esses à urgência embriagada “e se vão da lei da morte libertando”, ainda que possam efetivamente matar e morrer em suas obras nada valorosas.
Há um desprezo épico pelo saber testado e firmado, do tamanho das línguas de fogo que devastam o Pantanal e parte da Amazônia. Os investimentos estrangeiros despencam e fogem, levados pelos fumos da irresponsabilidade oficial e da morte. Jamais me acusem de ter dito um dia que a voz do povo é a voz de Deus. Já escrevi que, mais de uma vez, foi o capeta que soprou as escolhas aos ouvidos das massas.
“Tá tristinho, Reinaldo, com a vontade do povo?” Reproduzo pergunta que um petista fez em 2006 na área de comentários do blog quando escrevi o tal artigo. Nessas coisas, não sou alegre nem triste. Aponto o que vejo. Reservo os sentimentos para meus amores e meus amigos.
O auxílio emergencial, obra do Congresso, não de Bolsonaro, e a caça a governadores que combateram o vírus, com ou sem roubalheira, explicam parte do resultado da pesquisa. Há, pois, fatos que elucidam os números. Mas não era e não sou paternalista: a avaliação traduz agora, como traduziu no passado, escolhas que são também morais e éticas.
Todo o cuidado é pouco. A culpa não é só do povo, claro! Há a das elites, ainda mais importante, conforme também se depreende do citado Artigo 10. Escrevemos nosso próprio roteiro de “Como as Democracias Morrem”. No livro, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt observam que uma das “normas cruciais” para a sobrevivência da democracia é a “reserva institucional”.
Entende-se por isso “o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito”, pois tal ação “pode pôr em perigo o sistema existente”. Ministério Público e Judiciário, nos últimos seis anos, têm mandado a autocontenção às favas e destruído o ambiente da “reserva institucional”, pretextando o cumprimento da lei —o que, de resto, é falso.
A democracia, que é mais do que um sistema de escolha de governantes, está, sim, em perigo. Seja porque a paixão das facções chega às decisões de Estado, seja porque a elite do aparato investigativo-judicial perdeu a noção da importância que tem a “reserva institucional” na defesa de um regime de liberdades.
Pronto. O achincalhe pode começar, como em 2006, agora por novos autores.