Brasil de Fato
Amanhã, 30 de outubro, o povo brasileiro voltará as urnas para o segundo turno das Eleições 2022. De um lado o candidato que está tentando a reeleição, e do outro o que já foi presidente por dois mandatos durante o maior momento de crescimento econômico no país.
Mas quem for eleito presidente vai encontrar o Brasil em qual situação? Quais as expectativas para os próximos quatro anos? Para fazer essas análises, o Brasil de Fato conversou com a cientista política, Carla Michele Quaresma.
Quaresma é formada em Ciência Política, Sociologia e Marketing. Atua como professora universitária e pesquisa questões relacionadas aos partidos políticos, marketing político e eleitoral, financiamento de campanhas eleitorais. Confira a entrevista.
Brasil de Fato: Quem for eleito vai encontrar o Brasil em qual situação?
Carla Michele Quaresma: Vai encontrar um país que voltou ao mapa da fome. Nós temos hoje no Brasil quase 60 milhões de pessoas vivendo com algum nível de insegurança alimentar, um desafio que nós achávamos que já tinha sido superado nesse país, e que infelizmente volta a nos trazer problemas sociais muito graves. Vai encontrar um país com déficit educacional também enorme, houve aí toda uma desestruturação do sistema educacional no Brasil nesses últimos anos, um projeto que foi construído, de garantir a democratização do ensino, o acesso, inclusive, ao ensino superior no Brasil e foi completamente desmontado nesses últimos anos. Então nós temos um prejuízo do ponto de vista da formação de pessoas, essa qualificação que ajuda na construção da cidadania, mas ajuda também na incorporação dos indivíduos no mercado de trabalho numa situação mais privilegiada, com melhores salários, com melhores condições de trabalho.
Vai encontrar um país que igualmente desestruturou o investimento na área de ciência e tecnologia, então nós temos esse desafio muito grande, que é retomar investimentos para fazer com que o país possa avançar, para que o país possa projetar-se internacionalmente como o país que respeita e que produz ciência e tecnologia.
Além do problema da fome, além desse déficit educacional, desse déficit de ciência e tecnologia nós temos outros grandes desafios para o próximo governante, em relação a esses mecanismos que também foram desenvolvidos nos últimos anos, que impedem o cidadão de ter acesso à informações que são essenciais, inclusive sobre o orçamento público.
O próximo governante terá que se reconciliar com o povo brasileiro, no sentido de trazer uma confiança do povo brasileiro às suas instituições democratas, uma confiança do ponto de vista da gestão em relação ao bom uso do dinheiro público. Então é um desafio muito grande, fazer com que o orçamento se torne cada vez mais transparente para que as pessoas possam ter acesso a mecanismos que também incorporem esses juízos individuais no processo de tomada de decisões, essa incorporação, em uma lógica participativa na gestão dos recursos públicos. Esses são apenas alguns dos grandes desafios que o próximo Presidente da República terá que enfrentar na próxima gestão.
Nós temos hoje no Brasil quase 60 milhões de pessoas vivendo com algum nível de insegurança alimentar, um desafio que nós achávamos que já tinha superado nesse país / Foto: Wellington Lenon
Esses pontos que você trouxe seriam as principais pautas para serem trabalhadas nos próximos quatro anos?
Sem sombra de dúvidas. A questão da fome hoje é urgente. Nós temos no Brasil uma quantidade expressiva de brasileiros que não têm acesso ao mínimo necessário para garantir a sobrevivência. Eu não falo nem de dignidade, porque comida não garante dignidade, comida garante a sobrevivência, o básico para que a pessoa mantenha-se viva. Esse é o maior desafio. É o mais urgente.
Acho que a primeira ação governamental tem que ser no sentido de enfrentamento da fome para que nós tenhamos essa possibilidade de resgatar brasileiros que estão vivendo abaixo da linha da pobreza. Isso é, sem sombra de dúvida, algo mais urgente para o país no primeiro momento. E, claro, nós tivemos esse déficit educacional fruto de uma ausência de investimentos, uma ausência de planejamento para que realmente os bons índices que foram alcançados no Brasil em relação a inserção de jovens no ensino superior, em relação a democratização do acesso ao ensino técnico no Brasil com a expansão das escolas técnicas, inclusive a interiorização das escolas técnicas no Brasil, tudo isso foi sucateado, isso precisa ser recuperado. Nós precisamos garantir que os nossos jovens criem uma expectativa para o futuro. Isso só se faz através da educação.
É preciso resgatar programas como o ProUni, como o FIES, garantir mais uma vez programas como o Reuni para a reestruturação das universidades públicas que foram completamente negligenciadas nos últimos anos, garantir que haja um rápido acesso de jovens ao ensino técnico, ao ensino universitário no Brasil, e claro, a questão da saúde que é uma questão histórica.
Nós tivemos também, em virtude dessa ausência de investimentos, uma situação decorrente da má gestão da pandemia que criou uma série de problemas também na área da saúde. Nós temos hoje brasileiros que não conseguem ter acesso a uma consulta, a um exame simples, é necessário que o governo federal tenha esse esforço coordenado com os governadores de estado para garantir que essas filas de exames, de consultas sejam rapidamente diminuídas. O próximo presidente terá que fazer um esforço coordenado com os governadores de estado alocando recursos para garantir também a retomada desses investimentos que nesse último governo foram negligenciados. A locação correta desses recursos para garantir o acesso também a uma saúde de qualidade para o brasileiro.
De certa forma, esse período de pandemia da covid-19 também trouxe impactos para a economia nacional. Como o próximo presidente deve lidar com a economia nos próximos anos?
Nós temos aí uma necessidade de adequação do orçamento, também pela questão da pandemia, mas é bom que as pessoas saibam que foi imposto aí a lógica governamental no país, o teto de gastos que é completamente fora de contexto. Porque todos nós que temos essa possibilidade, por exemplo, de pagar uma mensalidade de um colégio, pagar a mensalidade de um plano de saúde, sabemos que existe um reajuste anual e nós não temos um teto para isso, nós pagamos por esse reajuste porque nós sabemos que há a necessidade de reajustar os salários dos professores, que há o reajuste natural.
Nós temos hoje no Brasil o maior pico inflacionário desde o início do plano real, corroendo o poder de compra das pessoas. O teto de gastos é algo que precisa ser repensado, porque nós não estamos falando, quando mencionamos a falta da educação, da saúde, nós não estamos falando de custos, nós estamos falando de investimentos, e se nós fazemos esse investimento na nossa casa, pagando o nosso plano de saúde que reajusta anualmente, pagando a mensalidade do colégio dos nossos filhos, que reajusta anualmente, o povo brasileiro, aquela família que realmente precisa do serviço público não vai ter a garantia de um bom atendimento que, necessariamente, passa pelo reajuste, a readequação de preço desses atendimentos, então isso é também um desafio muito grande para o próximo gestor, rever essa questão do teto de gastos.
É claro que qualquer gestor público tem que ter muita responsabilidade, nós temos, inclusive, uma legislação que impõe a responsabilidade fiscal, nenhum gestor pode gastar de maneira a exceder aquilo que ele arrecada, mas é necessário garantir que essa alocação dos recursos seja feita da maneira adequada para atender verdadeiramente os interesses do povo brasileiro, da maioria dos brasileiros que vivem em uma situação, muitas vezes, de pobreza e de extrema pobreza. Então, esses recursos devem ser direcionados no sentido de garantir uma sociedade cada vez mais igualitária.
Teremos muitos desafios como já mencionei a questão da inflação, que está correndo o poder de compra, principalmente dos salários, que atinge frontalmente todos os trabalhadores brasileiros que, quando vão ao supermercado encontram dificuldades de comprar o mínimo necessário da cesta básica, para garantir alimento para sua família. A questão da inflação, essa aceleração do processo inflacionário no Brasil, que até pouco tempo atrás era um problema que nós considerávamos resolvido, nós tivemos uma estabilidade econômica no Brasil que durou até um governo atrás, nós precisamos recuperar essa estabilidade da economia.
O próximo governante vai ter que pensar seriamente em valorizar mais uma vez o que já foi feito no Brasil, inclusive, nos dois primeiros governos do ex-presidente Lula, no governo da ex-presidente Dilma, uma valorização real do salário mínimo. Não é somente a correção pela inflação, e muito menos isso que está sendo proposto pelo atual governo que é de fazer com que esse salário nem seja reajustado pela inflação, ele vai ser reajustado a partir de um indexador que não cobre nem o processo inflacionário, ou seja, vai depreciar completamente esse poder de compra do salário mínimo. Nós precisamos de um governo que garanta o fortalecimento do salário mínimo, que dê poder de compra para as pessoas, que garanta a retomada do desenvolvimento da atividade econômica do país de modo a gerar empregos de maior qualidade.
Nós temos hoje no Brasil o maior pico inflacionário desde o início do plano real, corroendo o poder de compra das pessoas. / Foto: Reprodução
Quais caminhos o próximo presidente da República pode trilhar para mudar a realidade em que o Brasil encontra atualmente?
Nós temos um país, e os resultados eleitorais denunciam isso, profundamente dividido. Nós temos uma sociedade brasileira que está dividida em relação a projetos políticos diferentes. O próximo presidente tem que ter uma capacidade enorme de conversação com diversos segmentos da sociedade, para repactuar a nossa convivência, para garantir que possamos retomar um projeto desenvolvimentista para esse país, independente de questões individuais ou de pautas que estão completamente pouco sintonizadas com as reais necessidades do brasileiro, que é emprego, que é renda, que é um salário digno, que é o combate à inflação. Esses são os verdadeiros problemas da sociedade brasileira. Que é garantir novamente o acesso à educação, à saúde, à moradia.
Essas são as condições reais que o próximo Presidente da República terá que enfrentar, e para isso ele vai ter que repactuar, chamar a sociedade, diversos seguimentos da sociedade civil organizada para garantir que haja o compromisso coletivo, no sentido de retomada da normalidade, de retomada e fortalecimento das nossas instituições democráticas. Então o grande desafio é fazer com o Brasil se reintegre.
Como você avalia a composição do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para a governabilidade nos próximos quatro anos?
Nós tivemos o crescimento de alguns fenômenos eleitorais, e que se repetiu. Nós já vimos esse evento em 2018, repetiu-se agora em 2022. Então aquilo que nós imaginávamos que era apenas uma onda, a onda bolsonarista, que ajudaria a eleger representantes no parlamento, os grandes fenômenos eleitorais, inclusive, grandes puxadores de votos, não foi somente uma onda, mas percebemos que existe um projeto em curso, um projeto muito forte no Brasil que independe, inclusive, do presidente Bolsonaro.
Mas é bom que se diga também que partidos políticos como o PL, que foi o partido que formou a maior bancada na Câmara dos Deputados, são partidos que vivem naquela situação de muito fisiologismo político, de muita troca. São partidos do chamado ‘centrão’, que sempre foram esses partidos hegemônicos no Congresso Nacional. Independente de quem seja o próximo Presidente da República, cabe a esse governante definir quais são as estratégias para fazer com que essa situação, que é uma situação estrutural no Brasil, de fisiologismo entre os poderes, seja definidamente superada e o caminho para isso é a abertura do orçamento, fazer com que a sociedade participe das decisões governamentais e defina onde o recurso público deve ser investido.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia
Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato