Alcir Pécora, professor titular de teoria literária da Unicamp, em texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo
[RESUMO] O escritor Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, tem sua obra relançada com esmero pela Boitempo. Nos dois volumes de crítica literária, ele expressa sua relação visceral e apologética com Machado de Assis, em quem via um símbolo da sociedade brasileira do Segundo Reinado e um “dialético espontâneo” que, embora nunca tenha se referido a Marx, a seu ver operava intuitivamente um método de materialismo dialético em seus romances.
A reedição das obras completas do escritor e líder comunista Astrojildo Pereira (1890-1965) é uma surpresa, dado o esquecimento em que parecia mergulhado o autor, mas coerente com o catálogo de uma editora de esquerda como a Boitempo.
De minha parte, li com gosto os dois volumes mais ligados à literatura, “Machado de Assis: Ensaios e Apontamentos Avulsos” (1959) e “Crítica Impura” (1963), pois evidenciam outro fato quase esquecido: a vida intensa do pensamento marxista no Brasil, muito antes dos anos 1960 ou dos seminários universitários.
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Começo pelo livro sobre Machado, autor com quem Astrojildo manteve sempre uma relação visceral, precocemente assinalada por Euclides da Cunha em famosa crônica, ao vê-lo, ainda rapaz, beijar reverencialmente a mão do escritor moribundo em 1908, gesto que pareceu transfigurar o ambiente da vigília, até então desalentado pela indiferença dos meios culturais.
São sete ensaios e 16 artigos, aos quais Astrojildo se refere como escritos de circunstância, sem “plano prévio de conjunto”, publicados em diferentes épocas, situações e veículos da imprensa.
O mais conhecido deles vem logo na abertura: “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”, cuja hipótese é a de que o autor, na vida como na obra, foi uma “conjunção de contrastes”: solitário e pessimista, mas vivendo em “sociedade e cenáculos literários”; “tipo sensual”, mas “modelo de bons costumes”; “analista rigoroso e frio” e, ao mesmo tempo, “criador empolgante”.
Para o crítico, há uma consonância íntima entre a literatura machadiana e a evolução histórica do Segundo Reinado, em cuja base estavam os negros escravizados e a monocultura dos latifúndios, surgindo, depois, uma nova classe dirigente burguesa.
Tal transição explicaria o fato de Machado eleger como núcleo das intrigas a base familiar da vida em sociedade, na qual quase tudo se passava em torno de um “coração contrariado”, vencido pela conveniência.
Analogamente, Astrojildo propunha que o romancista dava cunho sentimental à narrativa, submetendo-a então a um “laboratório de análise” que reunia virtuosismo, vigor e crueldade, movido por um “espírito de vingança”, explicado basicamente por sua origem de classe, a gerar “sutil devastação” no ambiente em transformação das elites.
No ensaio seguinte, a propósito do célebre “instinto de nacionalidade” machadiano, Astrojildo reitera que o Brasil e o escritor crescem juntos, dado que a década de 1870 apresenta grandes mudanças no país, sintetizadas no movimento abolicionista, e muita agitação no exterior, com várias guerras em curso na Europa e o surgimento de novas correntes do pensamento, como o positivismo, o darwinismo, o naturalismo etc.
Machado, para ele, produzia a sua literatura em momento de transição dialética do que era ainda instinto para o que viria a ser uma real “consciência da nacionalidade”, enquanto projeto de unidade e de soberania do país.
O “problema da nacionalidade” seria, para Astrojildo, o mais constante motivo de Machado e aquilo que o faria, em termos literários, um crítico severo da “imitação dos modelos franceses” e, em relação à língua, alguém tão preocupado em estudar os clássicos como em filtrar o “linguajar do povo brasileiro” a fim de incorporá-lo à “nossa língua literária”, com base no critério decisivo da sua espontaneidade.
Astrojildo também rebate o lugar-comum a respeito do suposto absenteísmo de Machado em matéria política, cuja acusação mais dura, como a de Mário de Andrade, era de indiferença face à escravidão.
O crítico admite a falta de vocação de Machado para a militância, mas discorda que isso signifique alienação ou desprezo pela política, pois está nítido em seus escritos o empenho com que acompanhava a situação do país, aspecto que fazia da crítica o núcleo do seu engenho.
O seu humorismo tampouco seria apenas divertimento, mas “método de crítica social”, o que justificaria chamá-lo de “escritor realista”, sem ser da “escola realista”. A conclusão de Astrojildo, contrária à suposta alienação de Machado, o propõe como o mais nacional dos escritores brasileiros, porque era o que mais pensava a realidade nacional.
Na mesma linha apologética, dedicada a retirar das costas de Machado as acusações mais pesadas que lhe faziam alguns contemporâneos, Astrojildo nega que ele seja um autor abstratizante, incapaz de paisagem, o que é desmentido, por exemplo, pela poesia de “O Almada”, que celebra, com grande cuidado documental, um episódio do Rio seiscentista.
Em outro ensaio, Astrojildo considera as muitas metáforas dos olhos na obra de Machado e defende que elas demonstram o seu viés materialista, com “olhos tocando, apalpando, pegando coisas que viam”. O processo seria similar ao pensamento dos “dialéticos gregos”, como Heráclito, cujas noções-chave eram discórdia e contradição, que se ajustavam ao seu temperamento “inspirado, isolado e melancólico”.
Sobre a questão —e, por vezes, acusação— de Machado nunca haver referido Marx, Astrojildo contrapõe a percepção de que era um “dialético do tipo espontâneo” e mesmo “um materialista a contragosto”. É o que o faria anotar que “a contradição é deste mundo” e muitas vezes criar tanto a “transformação gradativa de um sentimento no seu contrário”, como a relatividade da opinião segundo a posição social ocupada pelas personagens.
Machado seria a encarnação inata do “homem dialético” e, se não chegou a sê-lo plenamente, a causa estava nas circunstâncias e nas condições do país em que viveu.
Outra larga questão machadiana revista por Astrojildo é a “mudança de qualidade” da sua obra com “Memórias Póstumas”. Não a entendia como “ruptura pura e simples”, mas sim como “soluções de contradições” que vinham do passado e que representavam um longo enterro do “idealismo romântico”, necessário para que Brás Cubas ressuscitasse materialista e galhofeiro, ainda que temperado de melancolia.
Por fim, Astrojildo examina a questão um pouco absurda, mas debatida à época, de saber se Machado era mesmo um homem mau, como alguns o julgavam. Na sua visão, havia uma dualidade demoníaca e angélica em Machado, típica da sua personalidade e do seu pensamento dialético.
Na sua obra, manifestava-se como “demônio da inteligência” e “dissecador de almas e caracteres”, interpretado erroneamente como insensível e anticristão. Se no humorismo e na ironia os críticos colhiam provas de sua crueldade, para Astrojildo tratava-se mais de um “latejar de dor”, repleto de “simpatia humana”.
Do conjunto, ressaltam dois aspectos: primeiro, Astrojildo defende Machado em todas as frentes em que o via ser questionado; segundo, esforça-se para insinuar nele um germe de marxismo, dentro da consciência possível do seu tempo, como se o escritor operasse intuitivamente um método de materialismo dialético na análise da história e no desenrolar de suas intrigas.
Nesses termos, não deixa de ser dissonante a insistência no nacionalismo de Machado, assim como a sua aplicação abundante do pronome “nosso” a tudo que fosse do país, cujo resultado gera um híbrido estranho de marxismo patriótico. Parece acertar Carpeaux, quando o chama de “tradicionalista e revolucionário ao mesmo tempo”, no qual convivem interpretação social e significação moral.
O segundo livro, “Crítica Impura”, de 1963, testemunha o gosto de Astrojildo pela miscelânea, de que confesso participar inteiramente. Reúne um conjunto de “ensaios, artigos, notas de leitura, quase tudo publicado antes em revistas e jornais”, sem maior preocupação de unidade, a não ser a do “fio ideológico”. As suas três partes —ensaios e resenhas, testemunhos da China revolucionária, notas sobre cultura e sociedade— são todas boas de ler, tanto pela variedade dos assuntos quanto pela linguagem nítida e a crítica direta.
Nos ensaios, nos quais vou me deter aqui, há constantes fáceis de identificar, como a valorização do gênero da crônica, usualmente considerado menor, graças à propriedade de captar a atmosfera dos eventos —o que não se estende à apreciação de cronistas como Rubem Braga ou Fernando Sabino, detonados por ele (“ficam borboleteando na superfície das coisas”; “ajudando a mistificar”, manipulando “bobas ironias”).
Destaca, porém, as crônicas de Eça de Queirós, cujas “Cartas de Inglaterra” julga rivalizar com os seus romances, e, acima de tudo, as de Lima Barreto, que considerava o “maior cronista de sua geração”, seja pelo “agudo poder de observação”, seja por sua militância em temas sociais, como a defesa da classe operária, da reforma agrária, dos negros e, enfim, da “força invencível do povo”.
Dos escritores estrangeiros destacados, pode-se dizer que Astrojildo tem geralmente olhos benignos para os comunistas, como Howard Fast e Louis Aragon, sem que pretenda negar o “caráter específico da arte” ou o fato de que “a ideia por si só não salva a obra de arte”. Para ele, sem “transposição estética do conteúdo ideológico socialista” —isto é, sem “vibração emocional”, “conexões com a própria vida” e, enfim, “talento”—, a obra não poderia ser bem-sucedida.
Astrojildo valoriza igualmente os artigos de opinião na imprensa, como os reunidos por José Veríssimo, em “Homens e Coisas Estrangeiras”; as biografias, como a de Monteiro Lobato, por Edgard Cavalheiro, e a de Mario Penaforte, por Onestaldo de Pennafort; os discursos acadêmicos, como o de Álvaro Lins na recepção de Roquete Pinto na ABL; os panfletos políticos, como os do padre Lopes Gama, de Gondin da Fonseca, de Lourival Fontes; as memórias, sobretudo as que valem como depoimento de época e da cidade, como as de Oliveira Lima, Vivaldo Coaracy e Luís Edmundo; os guias, como “No Termo de Cuiabá”, de M. Cavalcanti Proença —gêneros pouco prestigiados literariamente, mas que Astrojildo lê gostosamente, elogiando a “comunicabilidade coloquial”, o “conhecimento direto, exato e enxuto da realidade vivida” ou o “cheiro muito brasileiro”, desde que produzido com “visão realista, sem embelezamentos”.
Monografias também o interessam, como “Mutirão”, de Clóvis Caldeira, que trata da “variedade das formas que o mutirão assume nas diversas regiões do Brasil”; “O Movimento Sindical no Brasil”, de Jover Telles, com uma importante história das greves; “Brasil Século XX”, de seu companheiro de partido Rui Facó; assim como relatos de experiência direta como “Minha Experiência em Brasília”, de Oscar Niemeyer; enfim, ensaios filosóficos como “Furacão sobre Cuba”, de Sartre, que reconhece ser “escritor poderoso”, de “extrema sensibilidade”, apesar das discordâncias teóricas e políticas.
Pensei até em economizar caracteres nessa multidão de nomes e títulos, mas depois percebi que era a última coisa que deveria fazer. Pois não há nada melhor nos escritos de Astrojildo que essa proliferação de livros e coisas que é, primeiro, o que há de mais próprio em uma miscelânea e, segundo, o que mostra de mais duradouro em sua crítica: não o fio da ideologia, mas a rede distendida de curiosidade e de leitura, o nítido desejo de dar notícias de todas as coisas, o que empresta graça e sociabilidade à erudição.
Não é difícil ver que algumas das questões de Astrojildo permanecem relevantes no cenário brasileiro. A forma de militância que repudiava as desigualdades, como os sectarismos, é uma delas. Outra é o fervor da vida literária, para lembrar o termo de Brito Broca. A paixão revolucionária funde-se com o afã dos livros, a responsabilidade histórica com a bibliomania.
Ainda quando falte fineza teórica ou consistência metodológica em suas análises críticas, tal como apontadas por José Paulo Netto e Leandro Konder, nunca deixa de haver a mais genuína vibração pelo debate cultural.