Proibição de livros sobre raça e gênero nos EUA faz pressão sobre escolas e bibliotecas

Entre clássicos e obras contemporâneas, trabalhos são acusados de trazer obscenidades e viram caso no Judiciário
Foto: Todd Anderson/The New York Times
Foto: Todd Anderson/The New York Times

Alexandra Alter e Elizabeth A. Harris / THE NEW YORK TIMES

No estado americano de Wyoming, um procurador distrital de Justiça avaliou a possibilidade de apresentar acusações contra empregados de uma biblioteca por ela oferecer livros como “Sex Is a Funny Word”, ou sexo é uma palavra engraçada, e “This Book Is Gay”, algo como este livro é gay.

No estado de Oklahoma, um projeto de lei foi apresentado no Senado estadual que proibiria as bibliotecas de escolas públicas de manter em exibição livros cujo assunto seja atividade sexual, identidade sexual ou identidade de gênero.

No Tennessee, o conselho de educação do condado de McMinn votou pela remoção da graphic novel “Maus”, ganhadora do Pulitzer, do currículo de estudos sobre o Holocausto dos alunos locais da oitava série, porque ela traz imagens de nudez e palavrões.

Pais, ativistas, funcionários de conselhos escolares e legisladores em muitas regiões dos Estados Unidos recentemente vêm contestando livros com uma intensidade que não era vista há décadas. A Associação Americana de Bibliotecas informou num relatório preliminar, no final do ano passado, que havia recebido um número “sem precedentes” de 330 notificações sobre contestações a livros e que cada uma dessas notificações pode abranger diversos títulos.

“É um fenômeno muito surpreendente aqui nos Estados Unidos, ver a proibição a livros de volta à moda, e os esforços para promover acusações criminais contra bibliotecários escolares”, disse Suzanne Nossel, presidente-executiva da PEN America, uma organização que defende a liberdade de expressão, ainda que os esforços para instituir acusações criminais tenham fracassado, até o momento.

Contestações como essas são há muito um assunto comum na pauta das reuniões de conselhos escolares americanos, mas não foi só a sua frequência que mudou, de acordo com educadores, bibliotecários e defensores da liberdade de expressão. Também mudaram as táticas em uso para promover essas discussões e os foros em que elas são debatidas. Organizações conservadoras, alimentadas pelas redes sociais, agora pressionam por essas contestações nos legislativos estaduais, nas agências policiais e de justiça, e nas disputas políticas.

“A politização do tópico é o que existe de diferente com relação àquilo que eu via no passado”, disse Britten Follett, presidente-executivo de conteúdo na Follett School Solutions, uma das maiores fornecedoras de livros para escolas dos Estados Unidos. “Agora, o assunto vem sendo promovido via legislação e por políticos que se alinham com um ou o outro lado do debate. E, no final, o bibliotecário, professor ou educador se vê apanhado no meio da disputa.”

Entre os alvos mais frequentes há livros sobre raça, gênero e sexualidade, como “All Boys Aren’t Blue”, ou todos os garotos não são azuis, de George Johnson, “Lawn Boy”, ou menino de grama, de Jonathan Evison, “Gender Queer”, ou gênero queer, de Maia Kobabe, e “O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison.

A organização ativista No Left Turn in Education, ou educação sem virada à esquerda, mantém listas de livros que ela diz serem usados para “difundir ideologias radicais e racistas entre os estudantes”, entre os quais “A People’s History of the United States”, ou uma história das pessoas dos Estados Unidos, de Howard Zinn, e “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood. Aqueles que exigem a remoção de determinados livros insistem em que essa é uma questão de direito de escolha dos pais e que todos os pais devem ter a liberdade de orientar a criação de seus filhos.

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Jack Petocz com cartazes de protesto que ele usou em uma reunião escolar no estado da Flórida – Todd Anderson/The New York Times

Outros afirmam que proibir totalmente esses livros viola os direitos de outros pais e os direitos das crianças que acreditam que o acesso a esses livros é importante. Muitas bibliotecas escolares já têm mecanismos em vigor para impedir que estudantes retirem livros que seus pais desaprovem.

A escritora Laurie Halse Anderson, cujos romances para jovens são alvo de frequente contestação, disse que remover títulos que tratam de assuntos difíceis pode tornar mais complicado para os estudantes discutir questões como o racismo e a agressão sexual.

“Ao atacar esses livros, ao atacar os autores, ao atacar os temas, o que eles fazem é remover a possibilidade de diálogo”, ela disse. “E assim fica estabelecida a base para cada vez mais bullying, desrespeito, violência e ataques.”

Tiffany Justice, ex-integrante do conselho de educação do condado de Indian River, no estado da Flórida, e fundadora da organização Moms for Liberty, disse que os pais não devem ser criticados por perguntar se um livro é apropriado. Alguns dos livros que estão sendo contestados envolvem atividades sexuais, entre as quais sexo oral e sexo anal, ela disse, e as crianças não estão preparadas para esse tipo de material.

“Existem estágios diferentes de desenvolvimento da sexualidade em nossas vidas, e, quando isso é perturbado, os efeitos de longo prazo podem ser horríveis”, afirmou Justice.

As contestações a livros não vêm apenas da direita. “Ratos e Homens” e “O Sol É para Todos”, por exemplo, foram contestados ao longo dos anos com relação à forma pela qual tratam a questão da raça, e os dois estavam entre os dez livros mais contestados da Associação Americana de Bibliotecas em 2020.

No distrito escolar de Mukilteo, no estado de Washington, o conselho escolar votou nesta semana por retirar “O Sol É para Todos” —escolhido recentemente como o melhor livro dos últimos 125 anos em uma pesquisa entre leitores conduzida pela The New York Times Book Review— do currículo da nona série, a pedido de membros de sua equipe. As objeções deles incluíam argumentos de que o romance marginalizava os personagens não brancos, celebrava o “salvador branco” e usava epítetos raciais dezenas de vezes sem discutir sua natureza derrogatória.

Líderes políticos da direita aproveitaram as controvérsias sobre livros. Glenn Youngkin, o republicano eleito recentemente para o governo da Virgínia, atraiu apoio ao fazer das proibições de livros uma questão de controle familiar e destacou a questão em um anúncio de campanha no qual uma mãe desejava que o romance “Amada”, de Toni Morrison, fosse retirado do currículo de seu filho no segundo grau.

No Texas, o governador Greg Abbott exigiu que a agência estadual de educação “investigue qualquer atividade criminosa em nossas escolas públicas envolvendo a disponibilidade de pornografia”, iniciativa que os bibliotecários do estado temem possa fazer deles alvos de queixas criminais. O governador da Carolina do Sul solicitou que o superintendente estadual de educação do estado e a divisão de investigação de seu departamento investiguem a presença de materiais “obscenos e pornográficos” nas escolas públicas do estado, e mencionou “Gender Queer” como exemplo.

O prefeito de Ridgeland, Mississipi, recentemente suspendeu as verbas do sistema de bibliotecas do condado de Madison, afirmando que não liberaria o dinheiro até que os livros com temas LGBTQIA+ fossem removidos, de acordo com o diretor executivo do sistema de bibliotecas.

George Johnson, autor de “All Boys Aren’t Blue”, um livro de memórias sobre a experiência de crescer como negro e queer, ficou atônito em novembro ao descobrir que um integrante de um conselho escolar no condado de Flagler, na Flórida, havia apresentado uma queixa ao xerife do condado contra o livro. Escrito para leitores de 14 anos de idade ou mais, o texto inclui cenas que retratam sexo oral e anal e agressão sexual.

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George Johnson, autor do livro de memórias ‘All Boys Aren’t Blue’, em Los Angeles – Bethany Mollenkof/The New York Times

“Eu não sabia que isso era possível, apresentar uma queixa criminal contra um livro”, disse Johnson em entrevista. A queixa foi rejeitada pelo departamento do xerife, mas o livro foi removido das bibliotecas escolares, depois de uma revisão por um comitê.

Em uma reunião de conselho escolar na qual o livro foi debatido, um grupo de estudantes protestou contra a proibição e distribuiu cópias gratuitas do texto, enquanto manifestantes defendendo o ponto de vista oposto atacavam o trabalho como pornográfico, ocasionalmente gritando palavrões e epítetos hostis aos gays, de acordo com um dos estudantes que organizou o protesto, e postou imagens em vídeos do evento.

Johnson apareceu em vídeo durante o evento e argumentou que suas memórias continham lições valiosas sobre consentimento e que destacavam questões difíceis que os adolescentes provavelmente encontrariam em suas vidas.

Um comitê do distrito revisou o livro e determinou que ele era “apropriado para uso” nas bibliotecas de escolas de segundo grau, mas essa decisão foi revertida pelo superintendente da educação no condado, que disse ao conselho escolar que “All Boys Aren’t Blue” deveria ficar de fora das bibliotecas, enquanto novas regras eram preparadas para dar aos pais controle maior sobre os livros a que seus filhos podem ter acesso. Diversos outros títulos destinados ao público jovem que haviam sido contestados e removidos terminaram restaurados.

Até agora, os esforços para mover acusações criminais contra bibliotecários e educadores não deram resultado, em sua maioria porque as autoridades judiciais de Flórida, Wyoming e outros estados não encontraram base para investigações criminais. E os tribunais em geral adotaram a posição de que bibliotecas não devem retirar livros de circulação.

Ameaça

Mesmo assim, os bibliotecários dizem que basta a ameaça de terem de se defender contra acusações para que muitos educadores optem pela autocensura e decidam não manter no acervo os livros contestados. O espetáculo público de uma acusação pode ser suficiente para que um livro seja removido.

“Isso com certeza terá um efeito negativo”, disse Deborah Caldwell-Stone, diretora do departamento de liberdade intelectual da Associação Americana de Bibliotecas. “Você vive em uma comunidade há 28 anos e de repente pode se ver acusado do crime de difundir obscenidades. E a sua esperança era a de ser parte daquela comunidade para sempre.”

Ela disse que policiar agressivamente os livros adquiridos em busca de conteúdo inapropriado e proibir títulos pode limitar a exposição dos estudantes à grande literatura e a algumas das obras mais importantes do cânone literário.

“Se você se concentra em cinco trechos de um livro, pode encontrar obscenidade”, disse Caldwell-Stone. “Mas se alargar sua visão e considerar o livro como um todo, terá em suas mãos ‘Amada’, de Toni Morrison.”

Tradução de Paulo Migliacci

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/02/proibicao-de-livros-sobre-raca-e-genero-nos-eua-faz-pressao-sobre-escolas-e-bibliotecas.shtml

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