Programa Adote um Parque viola direitos de comunidades tradicionais

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ministério Público Federal no Amazonas recomenda a exclusão das reservas extrativistas do programa

Cristiane Prizibisczki / D’OECO / Observatório do Clima

O Ministério Público Federal deve publicar nas próximas semanas uma recomendação ao governo federal que poderá resultar na retirada de todas as reservas extrativistas (Resex) do programa Adote um Parque, por violação dos direitos das comunidades tradicionais. Atualmente, das oito unidades adotadas, cinco são Resex.

O entendimento de que o programa fere direitos destas comunidades partiu do Ministério Público Federal no Amazonas, que identificou uma série de vícios legais no decreto que institui o Programa (nº 10.623/2021), sendo o principal deles o não atendimento ao que está estabelecido na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que prevê às populações tradicionais o direito à consulta prévia, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens e direitos.

Das 132 Unidades de Conservação inclusas no primeiro edital de chamamento público publicado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para interessados em adotar áreas na Amazônia, 50 são reservas extrativistas, o que representa 38% do total das áreas listadas.

Após apuração e identificação dos vícios legais, e por entender que os efeitos do decreto abrangem todas as unidades de conservação previstas no edital, não só as do Amazonas, o MPF-AM encaminhou uma minuta de recomendação à 6ª Câmara do Ministério Público, que atua especificamente na defesa das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, recomendando a exclusão das Resex do Programa.

Caatinga
Logo guará, animal típico do Cerrado
Caatinga brasileira
Técnico do Ibama realiza fiscalização em área do Cerrado brasileiro - fotos públicas
Programa Quelônios da Amazônia (PQA), inserido no Cerrado, mantém sobrevivência artaruga-da-amazônia e o tracajá - fotos públicas
ncêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil)
Maracujá plantado no Cerrado - Foto Tony Winston - Agência Brasilia
arara_caninde_2506219981
Cerrado desmatado Foto Marcelo Camargo Ag Brasil 1
Cerrado desmatado Foto Marcelo Camargo Ag Brasil
Desmatamento no Cerrado brasileiro fotos públicas
Desmatamento no Cerrado em Goiás Foto Marcelo Camargo Agência Brasil
Incêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil) 1
Incêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil)
previous arrow
next arrow
Caatinga
Logo guará, animal típico do Cerrado
Caatinga brasileira
Técnico do Ibama realiza fiscalização em área do Cerrado brasileiro - fotos públicas
Programa Quelônios da Amazônia (PQA), inserido no Cerrado, mantém sobrevivência artaruga-da-amazônia e o tracajá - fotos públicas
ncêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil)
Maracujá plantado no Cerrado - Foto Tony Winston - Agência Brasilia
arara_caninde_2506219981
Cerrado desmatado Foto Marcelo Camargo Ag Brasil 1
Cerrado desmatado Foto Marcelo Camargo Ag Brasil
Desmatamento no Cerrado brasileiro fotos públicas
Desmatamento no Cerrado em Goiás Foto Marcelo Camargo Agência Brasil
Incêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil) 1
Incêndio destrói cerrado na região do Lago Oeste, no Distrito Federal (Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil)
previous arrow
next arrow

“Do ponto de vista da minha atuação no Amazonas, a gente entende que tem pontos [no texto do decreto] que precisam, no mínimo, de ajustes. O principal deles é a consulta prevista na Convenção 169 […] Submetemos a minuta à 6CCR para ver se eles pedem [a exclusão] para o país todo”, explicou o procurador da República no AM, Fernando Merloto Soave.

Segundo apurou ((o))eco, o documento enviado por Soave à 6ª CCR foi acolhido por todos os procuradores representantes da Câmara na região Norte, com instauração de procedimento em todos os casos. “Além disso, o colegiado da 6CCR deliberou pela elaboração de uma Recomendação, que está sendo minutada pela Assessoria Jurídica”, disse, por e-mail, a assessoria de comunicação da 6ª Câmara.

Apesar de o texto final da recomendação da 6CCR ainda não ter sido divulgado, é provável que ela acolha argumentos utilizados pelo MPF-AM.

Populações tradicionais e extrativistas

Em abril passado, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) já havia pedido ao Ministério do Meio Ambiente a exclusão das Resex do programa, sob o argumento de que a iniciativa “desrespeita a legislação e descaracteriza os objetivos para os quais [as reservas] foram criadas”.

Além do não cumprimento à Convenção 169 da OIT, a CNS argumentou que o decreto de criação do programa viola outras normas, como o próprio Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que reserva ao Conselho Deliberativo da UC a competência para estabelecer as atividades de gestão da Resex.

O CNS também sustenta que os Contratos de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRUs), firmados com as comunidades, não incluem “nenhuma previsão que autorize o MMA a dispor da área sem autorização da concessionária e do Conselho Deliberativo da unidade, para finalidades não previstas no respectivo Plano de Manejo”, diz trecho da carta enviada ao Ministério.

O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, argumenta que “o posicionamento apresentado pelo CNS pode estar embasado em pressupostos equivocados”. O trecho consta em um documento do órgão ambiental federal enviado no final de abril ao MPF.

Segundo o documento do MMA, ao qual ((o))eco teve acesso, todos os atos praticados pelo ICMBio nas unidades adotadas vão respeitar o que estiver estabelecido nos Planos de Manejo das unidades ou, na ausência desses planos, aquilo que estiver previsto em seu decreto de criação.

“Para os bens e serviços que implicarem relação com as comunidades tradicionais, essas serão ouvidas e terão a participação assegurada, cabendo esclarecer que tais etapas ainda não ocorreram no âmbito dos processos em andamento para a adoção”, diz o documento, assinado em 27 de abril passado.

previous arrow
next arrow
 
previous arrow
next arrow

Planos de Trabalho

O edital de chamamento público para selecionar as empresas adotantes prevê uma série de etapas que devem ser cumpridas até a assinatura do Termo de Adoção. Após a publicação do resultado da fase de seleção das empresas, via edital, tem-se início a fase de celebração do Termo. Nesta etapa, a adotante deve apresentar uma minuta sugestiva de plano de trabalho para a unidade adotada, com a indicação de bens e serviços que serão doados.

Nesta etapa do processo, de acordo com o edital, as adotantes poderão contar com a ajuda do ICMBio que, apresentará uma “lista sugestiva e não vinculativa de bens e serviços necessários para a Unidade de Conservação”, ficando a critério da proponente a sua utilização ao todo ou em parte.

Questionado por ((o))eco sobre o status do Programa, o ICMBio informou que “os procedimentos encontram-se em fase final da elaboração do Plano de Trabalho. Após essa última etapa, serão assinados os Termos de Adoção”.

Em relação à participação das comunidades no processo, o órgão garantiu que “as comunidades tradicionais localizadas em unidades de conservação têm sido devidamente ouvidas e os direitos daquelas em procedimento de adoção, resguardados”. “ Trata-se de ouvir e respeitar as comunidades e de potencializar a conservação das áreas protegidas”, diz o órgão federal.

Apesar de o ICMBio garantir que a participação das comunidades está assegurada nesse processo, passados cinco meses do início dos trâmites junto às empresas e perto de sua finalização dentro do órgão, elas ainda não foram ouvidas.

“Até o presente momento não fomos consultados, nem pelo governo, nem pelas empresas, o que coloca as populações tradicionais em situação de vulnerabilidade. Inclusive, alguns extrativistas, a exemplo da comunidade do Quilombo do Frexal [no Maranhão], têm nos procurado para saber como está o encaminhamento, os procedimentos que estão sendo tomados, porque eles não têm nenhuma informação. É algo que confirma a falta de diálogo do governo com as populações tradicionais extrativistas e suas organizações”, diz Dione Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas.

De fato, ao menos seis das oito empresas selecionadas via edital de chamamento já apresentaram seus Planos de Trabalho. Informações obtidas pelo Observatório do Clima via Lei de Acesso à Informação revelam que as propostas das empresas para as Resex vão de compra de material e contratação de serviços, a elaboração de Plano de Manejo.

Para a Resex do Quilombo Frexal (MA), citada por Torquato, o Plano de Trabalho elaborado pela Heineken – empresa selecionada no edital para a adoção desta unidade de 9.338 hectares – prevê a “elaboração do Plano de Manejo da UC, com foco no Encarte de Ordenamento Territorial/Estruturação da sede administrativa do ICMBio São Luís e do seu Setor de Comunicação/Estruturação da Resex, com foco em atividades produtivas”. Para tais atividades, a Heineken vai destinar R$ 466.900,00.

Segundo documentos internos do ICMBio obtidos pelo Observatório do Clima e repassado a ((o))eco, a assessoria prestada à Heineken para elaboração de seu Plano de Trabalho foi uma das mais completas, dentre os processos de adoção atualmente em curso.

Para que a indústria de bebidas pudesse elaborar sua proposta, o órgão ambiental apresentou um documento de 18 páginas, com diagnóstico da unidade e sugestões detalhadas de aplicação de recursos, em quatro linhas de investimento.

Ainda assim, os habitantes da Resex não se sentem plenamente atendidos em seus direitos. Segundo Janiléia Gomes, liderança da comunidade que soube da proposta da Heineken por meio da reportagem, muitos pontos do plano precisam ser ainda esclarecidos. A falta de diálogo e informações tem gerado insegurança entre os quilombolas.

“Somos três comunidades e temos várias demandas. Como a gente falou para o ICMBio, a gente quer algo que seja construído conosco. De imediato, não aceitamos o Adote um Parque porque, até então, a gente nem sabia que tinha sido adotado”, diz.

“Se você perguntar o que eles [comunidade] entendem por adoção, eles vão dizer que é como o processo de adoção de uma criança, que tem que conhecer, tem que ter diálogo antes. Depois o ICMBio veio dizer que era só uma questão de fazer investimento e que esse recurso ia ser utilizado por eles, que não teríamos acesso a nada. Depois falaram que o recurso iria para manutenção, que poderiam atender algumas de nossas demandas, como identificação do território com placas. É isso que a gente tá sabendo, mas, mesmo assim, não nos convenceu”, complementa.

Processo de cima para baixo

Essa insegurança sentida na Resex Quilombo do Frechal está relacionada também ao fato de, nas normas que regem o programa, não haver qualquer menção ao direito de consulta das comunidades tradicionais em relação às ações a serem executadas pelas empresas adotantes.

Para Fábio Takeshi Ishisaki, advogado especialista em ciências ambientais pela USP e analista da organização Política por Inteiro, a falta de citação expressa a este direito tanto no decreto 10.623/21 quanto no edital 04/2021 é mais uma afronta à Convenção 169 da OIT e às normas nacionais sobre o tema.

A Resex Quilombo do Frechal, que poderá ser “adotada” pela Heineken (Foto: ICMBio)

“Ouvir às comunidades tradicionais não quer dizer necessariamente que eles vão interferir no Plano de Trabalho, mas, no mínimo, você tem que abrir um diálogo com eles, porque é uma área utilizada definida na lei. Não porque estamos fazendo uma interpretação de bibliografia ou artigo científico, está na Lei do SNUC, na Convenção 169. O Adote um Parque, na forma como está, é uma violação aos direitos das comunidades tradicionais”, reforça Ishisaki.

Questionada sobre sua participação no programa Adote um Parque e sobre os trâmites para elaboração do Plano de Trabalho, a Heineken respondeu que: “O Grupo HEINEKEN está sempre avaliando as oportunidades de reduzir seus impactos ambientais e contribuir com a preservação do meio ambiente e com o desenvolvimento sustentável do Brasil […] A proposta para melhorias de bens de serviço da Reserva Extrativista Quilombo do Flexal, no Maranhão, por R$ 466.900, foi protocolada no mês de abril e, em breve, será concretizada junto ao Ministério do Meio Ambiente.

Outras unidades

A Resex Lago do Cuniã (RO) foi a primeira unidade adotada dentro do escopo do programa. O anúncio da assinatura do protocolo de intenções pela empresa adotante, o Carrefour, se deu no início de fevereiro, quando o decreto que oficializa a criação do Adote um Parque foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Mesmo tendo se passado quase dois meses entre o anúncio da adoção, feito em 9 de fevereiro, até a publicação do resultado do chamamento público, em 8 de abril, o documento apresentado pelo ICMBio ao Carrefour para embasamento do Plano de Trabalho continha majoritariamente ações voltadas para manutenção e compra de insumos para as bases do órgão na unidade, em propostas muito mais detalhadas do que aquelas voltadas às atividades desenvolvidas pela comunidade extrativista residente no local.

Nesta documentação, ao menos duas coordenações do ICMBio – Coordenação de Identificação e Planejamento de Ações para Conservação e Coordenação Geral de Estratégias para Conservação – recomendaram que as populações tradicionais fossem ouvidas.

“Considerando que os objetivos do Programa Adote um Parque são intrínsecos a cada unidade de conservação, faz-se necessária avaliação junto ao gestor da unidade, bem como do conselho deliberativo, uma vez que são os melhores conhecedores das demandas da UC sobre qualquer proposta considerada neste processo. […] Sugerimos ainda considerar o previsto no Contrato de Concessão de Direito Real de Uso – CCDRU, que concede às comunidades tradicionais o território das unidades de conservação, pactuando os direitos e deveres que as partes assumem para o alcance dos objetivos de criação no caso das Reservas Extrativistas”, diz trecho da documentação.

previous arrow
next arrow
 
previous arrow
next arrow

Questionado, o Grupo Carrefour disse, por meio seu diretor de Assuntos Corporativos e Sustentabilidade, Lucio Vicente, que:

“O plano de trabalho envolve a participação do ICMBio, das comunidades tradicionais residentes na Resex e do Ministério. Estamos aguardando as orientações do Ministério do Meio Ambiente e dos órgãos do Governo Federal para darmos continuidade na elaboração dos planos e iniciativas do projeto. […] Após assinatura do termo de adoção, como critério importante para a adesão ao projeto, realizaremos uma visita à Resex, para conhecer as lideranças das comunidades locais, avaliar os potenciais benefícios e as necessidades dos residentes, aliada ao fortalecimento da preservação existente no território. Teremos então um entendimento claro e preciso do estado atual da área e, em seguida, trabalharemos para beneficiar as comunidades da região, juntamente com as organizações que já trabalham lá, como fizemos em outros projetos que participamos”.

Para Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, a ideia do Adote um Parque não é ruim e existem iniciativas de sucesso parecidas ao redor do mundo, como a National Parks Foundation americana, que existe justamente para gerir doações da iniciativa privada e pessoas físicas que querem ajudar áreas protegidas naquele país. “O problema é a maneira como ele foi feito e está sendo conduzido por aqui, com as coisas de cima para baixo e sem clareza no processo”, diz.

Esta reportagem foi publicada originalmente em Oeco e republicada pelo OC por meio de uma parceria de conteúdo.

Fonte: Observatório do Clima
https://www.oc.eco.br/programa-adote-um-parque-viola-direitos-de-comunidades-tradicionais-dizem-juristas/

Privacy Preference Center