Política Democrática || André Amado: Leonardo Padura, um escritor recomendado

Obras do escritor e jornalista cubano Leonardo Padura, ganhador de diversos prêmios literários mundo afora, são leituras imperdíveis, recomenda André Amado.
Foto: EPA/STR
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Obras do escritor e jornalista cubano Leonardo Padura, ganhador de diversos prêmios literários mundo afora, são leituras imperdíveis, recomenda André Amado

Leonardo Padura é um escritor e jornalista cubano que coleciona prêmios literários, só lhe faltando o Nobel. Ganhou projeção internacional com o lançamento de O homem que amava os cachorros (2008) e Hereges (2013). Como autor de romances policiais, centrou suas histórias na figura do tenente do departamento de polícia, Mario Conde.

Em O homem que amava os cachorros, Padura fabula a vida e morte de Leon Trotski, a partir de conversas entre um aspirante a escritor e um homem que costumava levar seus dois galgos a passear na praia em Havana. Em Hereges, o gancho é a viagem de um navio que transportava judeus evadidos do nazismo, em busca desesperada de acolhimento no porto que fosse, às vésperas da Segunda Guerra.

Na obra de 2008, o talento e arte do escritor cubano logram transformar a história em ficção, e a ficção em história. A trajetória de Trotski destaca grandeza e traições em meio a enfrentamentos abertos, primeiro com Lenine, pela fundação do regime bolchevique e, depois, com Stalin, que tudo faria para eliminar talvez seu último virtual competidor pelo poder no Kremlin, objetivo que, por fim, logra êxito. O livro cobre também a visão idealista de Trotski do movimento comunista, suas relações com líderes revolucionários, que teriam sorte igualmente trágica, seu exílio pela Europa e México, e até suas experiências amorosas, incluindo seu romance com Frida Kahlo.

Em Hereges, a pretexto de acompanhar a sorte dos judeus por alguns destinos forçados na Europa, Padura traça a influência marcante deles, em particular na Holanda, não resistindo a tornar Rembrandt um personagem natural da trama, tanto mais porque era dele a tela que desapareceria por décadas.

São leituras imperdíveis, de que muito aprendi e desfrutei. Mas, como leitor confesso de histórias de detetive, interessei-me desde cedo pelos textos de Padura no gênero. Não foi uma digressão irresponsável. Em Hereges, por exemplo, não fosse a assistência de Mario Conde, o neto de um passageiro do maldado navio não teria podido avançar na investigação do paradeiro de “O rosto de Cristo”, do pintor flamengo.

Mais do isso, no entanto, foi nos romances policiais que Padura afiou sua técnica, de um lado, de marcar a distância entre a realidade e a invenção do discurso com traços leves e, de outro, de desenhar com vista embaçada as sombras e as luzes da narrativa.

Assim é que o escritor não se contenta em apenas homenagear alguns de seus ilustres antecessores, como Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Michael Connelly, ao caracterizar seu detetive com um solteirão empedernido, um solitário convicto, um tanto depressivo. Conde é tudo isso, mas os contornos do personagem ganham flexibilidade e complexidade.

Por que é solteirão? Teve, como muitos de seus colegas, aventura matrimonial desastrosa e concluiu preferir a companhia de prostitutas, isto é, mulheres que não pecam, apenas apreendem com a vida a sobreviver, aperfeiçoando maneiras de agradar os homens, mais para afirmar sua autonomia, sua independência, selecionando parceiros efêmeros e rotativos. A grande decepção de Conde foi descobrir que Karina o dispensara porque não era prostituta, mas casada e, pior: optava pelo marido, vale dizer um parceiro permanente[1].

Tal como a Paris de Allen Poe, a Londres de Conan Doyle e a Los Angeles de Chandler, Havana é o cenário insubstituível das histórias policiais de Padura. Só que Havana é uma metáfora de Cuba, e, considerando o sistema político vigente, nenhuma palavra é dita sobre as mazelas da ditadura, menos ainda sobre os Estados Unidos, cuja política de bloqueio econômico e comercial há anos vem asfixiando o desenvolvimento cubano. A única menção à política externa do país – e, ainda assim, muito indireta – envolve Magro, amigo de infância de Conde, um cadeirante por conta de ferimento a bala na guerra em Angola.

Cuba é apresentada por Padura como sua amante, cujas paisagens, elas, sim, contarão a decadência da sociedade, a degradação da paisagem urbana, as privações e a passividade indolente da população. Para compensar o silêncio político, é loquaz quanto a seus templos de devoção: a boêmia, os bares, os amigos, os lupanares, a música, o beisebol, a geografia.

Por isso, explora com carinho capítulos de seu dia a dia. Um prato delicioso é capaz de recuperar o prazer de Conde de viver, sobretudo se for “comida de pobre”, um ragoût, na boa tradição da bouilabaissecassouletpaella, feijoada. Um velório não é fonte de morbidez: “O vento soprava do sul, transportando vapores de flores murchas e de óleo diesel queimado, eflúvios de mortes recentes e de mortes distantes, quando os carros e os ônibus paravam na alameda principal do cemitério” (op. cit., p. 196). Um suspeito numa investigação, de apelido Russo, se presta a uma referência cultural: “O cabelo louro, quase branco, corria em cascatas suaves sobre uma cabeça perfeitamente redonda e o rosto avermelhado de bebida de vodca. Com uma jaqueta de gola alta teria passado por Aliosha Karamazov” (op. cit., p. 152).

Padura diverte-se, também, em atribuir a personagens secundários a divulgação de episódios mais comprometedores da vida em Cuba. O comentário sai da boca de Magro: “Você não sabia que, quando foram pintar o pré, roubaram metade da tinta e, por isso, não deu para pintar as salas de dentro? Não lembra que ganhávamos todos os prêmios… na colheita de cana porque tínhamos um pistolão na usina de açúcar que nos atribuía arrobas que não eram nossas?” (op. cit., p. 126).

Ventos de Quaresma é tão rico em estética e tratamento literário que me esqueci de dizer que a trama do livro envolve a investigação de um crime de morte, indignante – uma jovem professora muito popular na escola. Desenrola-se como manda a figurino, com a marcha lenta do inquérito, a identificação do suspeito e a prisão do responsável. Mas o que fica no pós-leitura é o feitiço da narrativa e construções de Leonardo Padura.

 

[1] As referências a passagens de livros de Padura será sempre a Ventos de Quaresma (Companhia da Letras, 2008).

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