O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro
A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária, econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças. Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes, confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos desafios. É preciso também reduzir conflitos – com o Congresso, governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.
Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir responsabilidades não funcionará. (…) E mais importante, a crise revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.
A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as interações necessárias do mundo da política nacional, regional e internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas: contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas; fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a crise enquanto constroem o futuro.
Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos, demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda da covid-19 ainda em 2020.
“Abril é o mais cruel dos meses” escreveu o poeta T. S. Eliot (A terra desolada, 1922). Está sendo em 2020. Mas não terá sido menos cruel março, quando a epidemia virou pandemia e atingiu, em mais de 140 países, o primeiro milhão de casos registrados (certamente uma subestimativa), que terão alcançado 2 milhões nos primeiros 12 dias de abril. Aguarda-se maio com trepidação.
Graças ao trabalho extraordinário da mídia profissional – que deu e dá espaço inestimável a epidemiologistas, médicos e profissionais da área -, parte expressiva da opinião pública compreendeu que a capacidade do sistema nacional de saúde não comportaria um fluxo excessivo de demandas por cuidados hospitalares, em particular leitos com respiradores em UTIs. Daí a necessidade de políticas de isolamento social, para que o pico da epidemia fosse menos intenso e diferido no tempo. A política do Ministério da Saúde foi explicada com clareza e transparência pelo ministro Mandetta e sua equipe. A política de assistência emergencial aos mais vulneráveis, aos informais, às pequenas e médias empresas, e à preservação do emprego, era e é absolutamente necessária e pôde apoiar-se na aprovação pelo Congresso da declaração de calamidade pública.
O vírus e a necessidade de respostas simultâneas que ele impõe vêm desvendando de forma dramática a extensão de nossas desigualdades e fragilidades sociais – nas áreas de saúde pública, saneamento, educação. São temas que vieram para ficar, com intensidade renovada, e estarão presentes em qualquer debate futuro, muito após o momento em que houver sido superada a atual pandemia.
O Brasil sairá diferente, e espero que melhor, ainda que gradualmente, se algumas importantes lições desta sofrida experiência puderem ser aprendidas. Se alcançarmos grau de capital cívico mais elevado, renovação relevante de lideranças políticas, maior confiança e credibilidade dos governantes junto à maioria da população.
Decorrido quase um terço de século da Constituição de 1988, o sonho de criação de um Estado de bem-estar social está a passar por seu mais sério teste. O Brasil descobre quão difícil é implementar o generoso (e de todo desejável) objetivo de construir um Estado garantidor do alento de aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação universais. Isso envolve custos elevados para a sociedade, e exige clara definição de prioridades numa visão de médio e longo prazos, que alcança o País em que gostaríamos que nossos filhos e netos pudessem viver.
As lições do vírus paradoxalmente ajudam nesse importante diálogo do País consigo mesmo; diálogo sobre um futuro que com frequência permitimos seja adiado.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC