A alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo sendo um valor igual
A teoria da perspectiva (prospect theory) é uma das contribuições do psicólogo israelense Daniel Kahneman que renderam a ele o Prêmio Nobel em Economia. Kahneman foi premiado por integrar a psicologia à ciência econômica no estudo de como formamos nossos juízos. A teoria da perspectiva trata de como reagimos a ganhos e perdas. Simplificadamente, descreve que a alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo se tratando de um valor igual. Esta coluna é sobre o fim do auxílio emergencial.
Dezenas de milhões de brasileiros pobres tiveram em 2020 mais renda do que em 2019, apesar da crise. Isso decorreu de dois atributos do auxílio emergencial. Um é o valor bem maior do que o do Bolsa Família: foi de R$ 600 (R$ 1.200 para mães solo, mais comuns na demografia de Norte e Nordeste). O segundo atributo é a amplitude da linha de pobreza que deu acesso ao benefício, mais generosa do que os limites draconianos do Bolsa Família: fez com que muitos brasileiros pobres que não recebiam nenhuma transferência passassem a receber.
O auxílio emergencial acabará no dia 31 deste mês e terá transferido um montante de recursos superior a dez anos de Bolsa Família. Ele é considerado parte da explicação pela alta da popularidade do presidente Bolsonaro, enquanto a pandemia matava dezenas de milhares de brasileiros. Um crescimento de popularidade que aconteceu ainda com a queda do PIB e a saída do seu ministro mais popular.
O aumento da avaliação positiva total do presidente esconde a queda que teve em alguns estratos de renda e regiões do País que antes o apoiaram. Na pesquisa Ibope-CNI de setembro, a taxa de ótimo/bom em sua avaliação avançou cerca de 30% na comparação com mesmo período de 2019. No Nordeste, o crescimento da taxa foi de mais de 60%. A “troca” de apoiadores pareceu positiva.
No auge do auxílio, a pobreza caiu em todas as regiões do País em relação às taxas de 2019, mas a variação foi tímida, talvez uma oscilação, nas regiões que elegeram Bolsonaro. Foi no Nordeste e no Norte que os efeitos do auxílio foram mais sentidos, com taxas de pobreza despencando mais de 10 pontos porcentuais. Muitos desses brasileiros que saíram dessa linha de privação parecem ter mudado sua avaliação do presidente. Lembremos que Bolsonaro fez poucos votos em todos os Estados do Nordeste e no Pará e Amazonas.
O auxílio emergencial não entrará em 2021. Ainda que haja alguma prorrogação por algumas semanas, há um encontro marcado com o seu fim. Qualquer reforma do Bolsa Família ou criação de novo benefício envolverá valores muito mais modestos. Com o fim do estado de calamidade, voltam a valer restrições fiscais.
Voltemos a Kahneman. O que vai sobrar da avaliação positiva do governo entre os que recebiam o auxílio emergencial? Pela teoria da perspectiva, poderíamos especular que a perda de popularidade pode ser inclusive mais rápida e intensa do que o ganho que ocorreu. Ainda que recursos sejam direcionados para esse público, eles serão necessariamente bem menores e necessariamente desagradarão outro grupo.
O presidente já manifestou ao longo do ano compromissos com grupos que o apoiaram, no tocante ao financiamento de um novo benefício social. Fez compromisso com o teto (mercado), com o abono salarial (assalariados no Centro-Sul) e contra mudanças para a atual geração de servidores e de aposentados. Sem brigar com nenhum desses, vai gerar insatisfação na nova base galvanizada pelo auxílio. Brigando, perde apoio em outro lugar.
É plausível, portanto, o cenário em que Bolsonaro viva seus piores índices de aprovação em 2021, e que chegue em 2022 até como o presidente mais impopular a disputar uma reeleição na Nova República.
Nas últimas semanas, muito se discutiu sobre um Biden brasileiro. Para muitos, alguém capaz de reunir todas as forças que perderam em 2018. Para outros, alguém mais ao estilo “você não gosta de mim, mas a sua tia gosta” – capaz de conseguir votos à direita, entre quem digitou 17. Mas não será preciso um Biden brasileiro se não houver um Trump a bater. O presidente americano manteve ao longo do mandato o entusiasmo de muitos grupos que o elegeram, entregando promessas de campanha. Não parece ser o caso aqui, e diante do complicado labirinto da política econômica talvez só reste ao presidente resgatar a agenda de costumes e de encarceramento.
Economistas projetaram um elevado “desemprego oculto” neste ano. É uma taxa bem acima da estatística oficial de desemprego, pois inclui os milhões que perderam emprego, mas não passaram a procurar um. Em breve estarão mais visíveis. Podemos imaginar que algo parecido acontecerá com a rejeição ao presidente. O fim do auxílio pode evidenciar as sequelas de 2020 na avaliação dos eleitores e revelar o que o pagamento escondeu: sua rejeição oculta.
*DOUTOR EM ECONOMIA