2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição
Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida.
O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.
No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.
Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído.
A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.
Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).
Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb).
Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência.
No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.
Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.
O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.
* Doutor em Economia