Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa
A cadeirinha no carro. O estado de alerta perto de piscinas. A vigilância com objetos miúdos na boca. O medo da posição errada no sono. Preocupações normais de pais de crianças pequenas. Mas o leitor pode se surpreender ao saber que no Brasil há uma causa de morte prevenível muito mais comum nas crianças de até 5 anos. Oito vezes mais frequente que a síndrome de morte súbita, quatro vezes mais que as mortes por afogamento, o dobro das mortes no trânsito ou por aspiração de objetos. É a morte por diarreia, que só em 2015 vitimou cerca de 2 mil crianças brasileiras na primeira infância.
Uma das fotos mais tristes da atual pandemia é a do fotógrafo Michael Dantas, mostrando um garoto beneficiado por uma campanha de distribuição de máscaras em um bairro pobre de Manaus. A máscara amarela se destaca: além dela o menino veste apenas uma bermuda, cercado por uma água imunda tomada pelo lixo. É de uma ironia melancólica: a máscara para protegê-lo do coronavírus, enquanto segue exposto aos rotavírus, adenovírus, enterovírus, norovírus, sapovírus, astrovírus, calicivírus ou o da hepatite A – além das bactérias e vermes da água escura que cerca seu corpo.
Os dados que abrem esta coluna são de estudo da professora Elisabeth França e outros pesquisadores brasileiros, publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. Ele mostra também que houve enorme progresso quanto à morte de crianças por doenças diarreicas desde 1988, apesar desta ainda ser uma das dez principais causas de morte até os 5 anos. Para além do índice de mortalidade, outros estudos mostram o impacto devastador que a falta de água limpa tem nessas vidas.
Como os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro, ele é prejudicado pelas doenças da água suja, que afetam a absorção de nutrientes. A ausência de saneamento afetará no futuro desde a altura até as capacidades cognitivas desse cidadão. Pesquisadores chegam a estimar a perda de pontos no QI ou de anos de escolaridade em função das diarreias nos primeiros anos de vida. Para piorar, alguns protozoários e bactérias de água suja podem afetar o desenvolvimento ainda que não causem diarreia. O total do potencial humano perdido não se estima.
No Brasil, quase metade da população não tem serviços de coleta de esgoto e cerca de 35 milhões vivem sem acesso a água tratada. A situação é pior para a população negra e no Norte e Nordeste. A realidade também é dramática nas escolas: 15% nem chega sequer ter banheiro em suas dependências.
Os adultos, evidentemente, também são afetados. A OMS calcula que cada real investido no saneamento economiza quatro reais na saúde. Já o Instituto Trata Brasil projeta bilhões de reais de ganhos no PIB com a universalização do saneamento, decorrentes de aumento da produtividade do trabalho, menos afastamentos, melhora no aprendizado nas escolas – além dos ganhos com valorização imobiliária e turismo. Mas para o instituto, no ritmo atual de investimentos a universalização pode demorar 120 anos.
O marco do saneamento, que passa por idas e vindas desde 2018, pode ir à votação final esta semana. Ele estabelece a universalização até 2033 (ou em determinadas condições até 2040), com competição com o setor privado.
Parte da controvérsia sobre o projeto pode ser visualizada na manifestação de uma deputada que votou contra ele: “Chega a ser um escárnio. Porque o projeto propõe metas para as companhias públicas”. Metas de universalização e quebras de monopólios mobilizam os interesses das corporações dessas companhias públicas, o que explica parcela da dificuldade que a pauta teve em avançar nos últimos anos. O especialista em infraestrutura Claudio Frischtak mostra que de 2014 a 2017, 3 de cada 4 companhias estaduais priorizaram gastos com folha em relação aos investimentos.
Convidado por Bill Gates para contribuir a resolver “o problema do saneamento”, o engenheiro Peter Janicki, bem-sucedido dono de uma empresa que fabrica componentes aeroespaciais, se surpreendeu: “Que problema do saneamento?”. Para parte da sociedade, é difícil conceber que as famílias mais pobres vivam de forma tão diferente da sua. Mesmo entre os ambientalistas parece haver interesse muito maior por pautas mais “instagramáveis”, como a questão da Amazônia.
Se na pandemia debatemos temas do século 21, como a renda básica universal, ainda não superamos um tema dos séculos passados: o saneamento básico universal. Quando o coronavírus passar, milhões de brasileiros pobres continuarão convivendo com doenças infecciosas na rotina de suas famílias. Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa.
*DOUTOR EM ECONOMIA