Seja via o benefício ou por novo programa social, a população infantil deve ser prioridade do governo
De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretamente (gasto) ou indiretamente (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencial mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?
Cerca de 50 milhões dos beneficiários do auxílio emergencial não eram beneficiários do Bolsa Família. Como possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenciários ou trabalhistas. Eles pressionarão pelo aumento da cobertura da assistência social. Já os beneficiários do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencial. Eles pressionarão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).
Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramento, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiários, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.
Assim, um desdobramento do auxílio emergencial poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvimento da infraestrutura do domicílio (gastos com eletrodomésticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvimento infantil e de inclusão digital).
Ugo Gentilini, líder global para assistência social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporários da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementaram. Condizente com as curvas de popularidade no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriormente sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhadores do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelmente aumentando a sustentabilidade política de programas de grande escala”.
O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceitos associados a transferências de renda, o que pode ter desmistificado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocracia já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincentivar o trabalho ou estimular o aumento de famílias.
Para o Bolsa Família, é especialmente importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvimento destes futuros trabalhadores – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças.
Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republicanos estrelados.
Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferência de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específicos tidos como “estratégicos”. Como provocou recentemente Carlos Góes, estratégicos são os pobres.
Poderia o auxílio emergencial ser um catalisador dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicamente aconteceram diante de inesperadas janelas de oportunidade – mas elas se fechariam rapidamente. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabilidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.
*Doutor em economia