Tática mais comum é mudar o discurso e eventualmente a prática, mas admitir equívocos somente “en passant”
Só há uma pessoa infalível no mundo, o papa Francisco. Assim mesmo, esse dogma, estabelecido para os papas em 1870 pelo Concílio Vaticano I, vale apenas para os católicos e com uma ressalva: a infalibilidade se restringe a matérias relativas à fé e à moral (costumes).
No Brasil, porém, a infalibilidade parece ter aplicação mais ampla. Políticos quase sempre se negam a admitir erros e a fazer autocrítica. É inevitável voltar a esse tema, já abordado aqui um ano atrás, porque o culto à infalibilidade se espalha à direita e à esquerda.
O caso clássico desse culto, pelo qual o partido tem sido seguidamente cobrado, é o do PT, cujos governos tiveram muitos acertos, mas também cometeram muitos erros. Lula e o PT até hoje não assumiram formalmente a responsabilidade pelos desvios do Mensalão e do Petrolão. Dilma nunca admitiu suas falhas na condução da política econômica nem sua omissão no combate à corrupção na Petrobras. Lula, ressuscitado politicamente pelo Supremo, continua a tergiversar sobre o tema.
O tucanato jamais fez mea culpa sobre erros na gestão do PSDB no governo Fernando Henrique. Incensado pelos acertos, como a estabilização promovida pelo Plano Real, os tucanos nunca admitiram o equívoco na sua política cambial, responsável pela quebra do país e por destruição de indústrias. Quando FHC deixou o governo, em 2002, o Brasil estava insolvente, com uma dívida de US$ 30 bilhões no FMI, só quitada no primeiro governo Lula. Nunca se admitiu também a escancarada compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, em 1997. Tampouco houve mea culpa quando, contra seus próprios princípios, o PSDB bloqueou medidas fiscais propostas ao Congresso pelo ministro Joaquim Levy, em 2015.
No mês passado, o ex-juiz Sérgio Moro foi considerado parcial pelo Supremo Tribunal Federal na condução do processo e na condenação do ex-presidente Lula. Moro, em nota, afirmou ter “tranquilidade em relação aos acertos” de suas decisões nos processos da Operação Lava-Jato. E acrescentou: o Brasil “não pode retroceder no combate à corrupção”. Na verdade, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Brasil não pode mesmo retroceder nessa matéria, mas o ex-juiz, diante de evidências e de uma decisão do STF, também não tem como negar sua conduta irregular.
No país dos infalíveis, a tática é mudar o discurso e eventualmente a prática, mas admitindo equívocos “en passant”. O governador de São Paulo, João Doria, virou casaca em relação a Jair Bolsonaro, depois de se eleger com apoio do “Bolsodoria”. Com o avanço da pandemia e a aproximação do período eleitoral, passou a ser o mais feroz crítico do presidente. O PSDB paulista nunca fez pedido formal de desculpas pelo apoio a Bolsonaro, e Doria admitiu superficialmente o erro, mas também sem se desculpar. O mesmo se deu no Rio Grande do Sul, onde o candidato do PSDB, Eduardo Leite, se elegeu em 2018 em parceria com o bolsonarismo e agora adota posição fortemente crítica ao presidente, como se nada tivesse a ver com a eleição dele.
No mês passado, um ano depois da chegada da pandemia ao país, Bolsonaro rendeu-se às críticas e lançou o até agora inoperante comitê de combate à covid-19. Mudou o discurso ao deixar sua postura de defesa da economia e disse: “Vida em primeiro lugar”. Em declaração anterior, ele debochou de mortos ao dizer que o Brasil não pode ser um “país de maricas”. Também promoveu aglomerações e andou sem máscara.
Nenhuma palavra de autocrítica a essas posições foi dita pelo presidente. Ele mudou um pouco o discurso e seguiu a vida, mantendo a crítica ao isolamento social e a defesa do tratamento precoce para a covid-19 com um conjunto de medicamentos sem eficácia comprovada.
Os políticos em geral têm dificuldades para admitir seus erros. Mas não é assim em toda a parte. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, havia anunciado um rigoroso esquema de quarentena de 1º a 5 de abril, no feriado da Páscoa. O planejamento, porém, foi falho e questionado por pela sociedade alemã. E Merkel não só voltou atrás: admitiu o erro como sendo só dela, embora tivesse tomado a medida em conjunto com 16 governadores. Aqui, Bolsonaro aproveitou o mea culpa de Merkel para dizer que isso confirmaria sua atuação para impedir o fechamento de atividades não essenciais e preservar a economia. Perdeu a chance de usar o exemplo para admitir seus erros dizendo que até a Merkel errou nesta pandemia.
A própria imprensa tem dificuldade de fazer autocrítica. O Grupo Globo, ao qual pertence o Valor, por exemplo, fez a sua em relação ao posicionamento no início do regime militar de 1964. Outros grandes veículos de imprensa nunca reviram, em editoriais, apoios como o dado a Fernando Collor em 1989, que levou o país ao desastre. E mesmo à aceitação de Jair Bolsonaro, pela crença de que a política liberal de Paulo Guedes, na Economia, compensaria as posições externadas em seus conhecidos discursos de ódio e de apoio à ditadura militar e a torturadores. Como os políticos, a imprensa muitas vezes muda o discurso, passa a criticar ações e políticos que antes sustentava com elogios ou omissão, mas não admite ter cometido erros nem pede desculpas.
Em dois raros exemplos recentes, mas após erros menores, Doria pediu escusas por ter viajado a Miami, de férias, em plena pandemia e o governador do Rio, Claudio Castro, se desculpou por promover festa de aniversário e aglomeração de pessoas.
A recente carta em defesa da democracia, assinada por seis presidenciáveis, foi muito bem-vinda. Mas o Brasil inteiro sabe o que eles fizeram no “verão passado”. Quase todos apoiaram Bolsonaro, direta ou indiretamente, em 2018. Ou foram ingênuos politicamente, porque o presidente nunca escondeu seu viés antidemocrático, ou malévolos: apertaram o botão do “dane-se” para ver o circo pegar fogo. Não podem agora, quando o país arde em chamas, se fingir de inocentes e formar uma frente democrática sem uma alentada autocrítica e um formal pedido de desculpas. Sem isso, dificilmente conquistarão a confiança do eleitor, seja este um bolsominion arrependido, seja um petista decepcionado.