“Governabilidade e controles” é o título de um artigo clássico – porque talvez mais atual do que à época em que foi publicado (1988) –, do sociólogo Carlos Estevam Martins, falecido em 2009, e que deveria ser lido e relido pelas velhas e novas gerações. Ouvimos dizer diariamente que o Brasil é uma democracia plena, que aqui as instituições funcionam plenamente.
Pois nada me parece mais falso: vivemos um dramático processo que eu ousaria caracterizar como de desinstitucionalização.
Dizia aquele eminente professor que a descoberta do ponto de equilíbrio ideal para cada situação é de fundamental importância para manter em harmonia a convivência entre liberdade e controle. O objetivo do controle não é o de diminuir a liberdade, mas apenas o de fazer valer os limites dentro dos quais cada um exerce a liberdade de que desfruta. O equilíbrio estaria na sutil equidistância entre o excesso e a falta de controles, cuja forma mais simples é a reciprocidade (A e B se controlam reciprocamente) e a mais apurada é a circularidade (A controla B, que controla C, que controla A).
Considerando Estado e sociedade, podemos imaginar quatro grandes categorias de controle: os exercidos pela sociedade – sobre si mesma e sobre o Estado; e os exercidos pelo Estado – sobre a sociedade e sobre si mesmo. Em rápida abordagem sobre estas diferentes combinações em nosso país, poderemos identifi- car, com facilidade, o quanto estes controles estão destroçados e o grau de ruptura das relações entre a sociedade e o Estado, consigo mesmas e entre si. Permitam-me interpretar e extrapo- lar a ideia do mestre.
O controle da sociedade sobre si mesma denota o nosso comportamento coletivo, cujas referências são supostamente compartilhadas e reconhecidas, não deveriam depender de coerção formal, mas revelar espontaneidade, o retrato da própria cultura de um povo. A nossa tolerância em relação à ilicitude e à indiferença em relação aos direitos dos outros revelam, de modo geral, profundo desprezo pelos mais elementares valores éticos.
O próximo está sempre muito distante, e a solidariedade é apenas adereço linguístico.
O controle da sociedade sobre o Estado se expressa pela exis- tência e efetividade de instituições e mecanismos característicos da vida republicana que estabeleçam limites às autoridades e coloquem à disposição das pessoas instrumentos adequados ao controle do poder político e administrativo. É bem evidente que se trata de um produto raro entre nós. É fácil constatar que, por mais impopular e ilegítimo que seja, um governo é capaz de impor a sua vontade, aprovando medidas contrárias ao interesse da grande maioria da população, afastada e alienada das decisões.
O controle do Estado sobre a sociedade é essencial para arbitrar os conflitos, e constitui instrumento para promover a maior equalização possível entre os cidadãos. Para tanto, precisa dispor de uma legislação perene e compreensível, que valha indistintamente e cuja aplicação esteja sob a responsabilidade de magistrados justos e equilibrados. É despiciendo dizer que, entre nós, leis não “pegam”, dependem de quem e a quem se aplicam, e há sempre um jeitinho para tudo.
Por fim, o controle do Estado sobre o Estado só é possível quando cada Poder e cada órgão tem uma função definida, atua em harmonia com os demais (respeitando os respectivos limites) e está sujeito a apropriado controle social, não estritamente corporativo ou meramente interno. Não é preciso muito esforço para perceber a desordem administrativa e institucional reinante no país, a ação descoordenada controlada dos Poderes e órgãos, e a atuação voluntarista, saliente e até arbitrária de vários entes e agentes públicos, exercendo suas atividades como se fossem verdadeiras ilhas sem freios e contrapesos, indispensáveis em uma democracia.
Como mencionei no início, o passado e o futuro parecem estar fundidos no Brasil.