Se cada instrumento pudesse executar por si mesmo a vontade ou a intenção do agente ( . . .), se a lançadeira tecesse sozinha a tela, se o arco tirasse sozinho de uma cítara o som desejado, os arquitetos não mais precisariam de operários, nem os mestres de escravos1 (Aristóteles)
I O papel histórico do trabalho
No capítulo V (Processo de Trabalho e Processo de Produzir Mais-Valia), § 1 (O Processo de Trabalho ou o Processo de Produ- zir Valores-de-Uso), do Livro 1 de O Capital, Marx define o conceito de trabalho “primitivo” [ER] e assinala o papel fundamental que ele desempenhou inicialmente na separação do fundante ser social humano do reino pura e naturalmente animal.
Nos primórdios da humanidade, o manuseio pelos primeiros hominídeos dos objetos naturais, ofertados pela natureza (não produzidos, portanto, pela cognição, concepção intervenção, criação e obra humanas) foi utilizado para a satisfação de sua necessidade imediata de sobrevivência. “A princípio, o homem apode- rava-se dos produtos, que a natureza lhe oferecia. Este processo prolongou-se durante várias dezenas e centenas de milhares de anos. Com o decorrer do tempo, o homem foi aprendendo a utilizar os componentes naturais simples e acessíveis, como a madeira, pedras etc. para a produção dos bens necessários”.2
- Aristóteles. Política. Livro I, capítulo II, Do Senhor e do Coleção A obra-prima de cada autor. Ed. Martim Claret, p. 13.
Esta é uma forma embrionária, pouco desenvolvida, do traba- lho, que sofrerá transformações fantásticas, ao longo de milênios. Descrevendo os degraus inferiores e primitivos do trabalho, afirma Marx: “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio mate- rial com a natureza. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. (…) Pressupomos o trabalho como forma exclusivamente humana. (…) Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumento seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia”.3
Passaram-se milhares de anos para que o trabalho executado por ferramentas produzidas pela intervenção humana consciente fosse uma realidade e desse, por conseguinte, um salto qualita- tivo no desenvolvimento do trabalho. Os instrumentos de traba- lho – concebidos e produzidos pelo cérebro e corpo humanos atra- vés da transformação da natureza – aumentam a força física da força de trabalho humana e lhes permite superar os obstáculos produtivos que não poderiam ser vencidos com a mera e simples ajuda de suas mãos.4
Niésturj destaca que a vida do homem primitivo estava sujeita ao perigo, à doença e à privação e resgata a seguinte passagem lenineana sobre aquela longínqua época em que se formava a humanidade: “Que esse homem primitivo obteve o que é necessá- rio para a sua subsistência como um presente gratuito da natu- reza é uma estúpida fábula. Atrás de nós não houve qualquer Idade de Ouro, e o homem primitivo ficou totalmente sobrecarre- gado com o peso de existência, devido às dificuldades da luta contra a natureza. (V.I. Lênin, ‘Obras’, 4. ed., T. V, p. 95)”.5
- SÁVTCHENKO, P. O que é o Trabalho? Tradução de I. Chaláguina. Coleção ABC dos Conhecimentos Sociais e Políticos. Edições Progresso, 1987, Impresso na URSS, p. 7-8.
- MARx, Karl. O Capital . Livro 1, V.1 . 8 ed. Trad. Reginaldo Santana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1980, p.
- NIÉSTURJ. F. El Origem del Hombre. 3. ed. Mir. Moscu. 1984, p. 143.
- Ibidem, p.
“O meio de trabalho [instrumento de trabalho, ER] é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho [matéria que se será transformada, ER] e lhe serve para dirigir a atividade sobre este objeto. (…) O processo de trabalho, ao atingir certo nível de desenvolvimento, exige meios de trabalho já elaborados. Nas cavernas mais antigas habitadas pelos homens, encontramos instrumentos e armas de pedra. No começo da história humana, desempenham a principal função de meios de trabalho os animais domesticados (…), ao lado de pedras, madeiras, ossos e conchas trabalhados. O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho e Franklin define o homem como o ‘toolmaking animal’, um animal que faz instrumentos de trabalho”.6
Constitui, portanto, um salto qualitativo significativo na evolução humana o trabalho – destinado a criar valores de uso à necessidade humana – executado com ferramentas produzidas por seres humanos, o que eleva o trabalho a uma forma cognitiva
-material social mais desenvolvida do que a sua predecessora forma natural – apropriar-se o trabalho (ser humano/natureza) dos frutos da natureza na sua fase mais primitiva.
“O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valo- res-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição eterna da vida humana”.7
Do uso inicial das ferramentas simples até o surgimento e desenvolvimento da manufatura artesanal e a transição qualitativa desta para a maquinaria e a grande indústria, as forças produtivas (força de trabalho humana mais instrumentos de trabalho/produção) produziram e sofreram um desenvolvimento que abalaram todas as formações econômico-sociais existentes, como abalam a atual também.
O que emerge com a Quarta Revolução Industrial (uma manifestação concreta e real e significativa da cognição humana construída ao longo de milhares de anos de sofrimento, privação, criação, superação e produção) confirma a previsão de Marx: a força de trabalho tende a tornar-se supérflua.
- MARx, Karl, op. cit., p.
- Ibidem, p. 208
II A Indústria 4.0: a quarta revolução industrial
Segundo vários estudos, há uma quarta revolução industrial8 sacudindo o mundo e novamente revolucionando “os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas” .9 Desde pelo menos 2011, a partir dos centros industriais alemães, mais especificamente a partir da realização da famosa Feira de Hanover, onde os alemães apresentaram fantásticas inovações feitas pelos seus intelectuais-científicos, vem ganhando ampla divulgação e aceitação mundial o fato de que os sistemas produtivos industriais e de serviços (cada vez mais inteligentes, digitais e autônomos da presença física humana, tonando-se autômatos) mais avançados e localizados nos países capitalistas mais desenvolvidos estariam sendo radicalmente revolucionados através do que se passou a chamar de quarta revolução industrial. Inicialmente, os alemães batizaram de Indústria 4.0 para qualificar esse processo que, segundo várias vozes, enterrarão a velha indústria 3.0 e o velho mundo – tal como os conhecemos hoje – e dará vida a algo nunca visto e experimentado pela humanidade.
- A Primeira Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra, no século xVIII (1780- 1830) e foi marcada pela emergência do setor têxtil dinamizado pela máquina de fiar, o tear mecânico, a siderurgia, a máquina a vapor originada da combustão do carvão (a forma de energia principal desse período técnico), a mecanização do trabalho via máquina-ferramentas, a ferrovia, além da navegação marítima, também movida à energia do vapor do carvão. Deu-se ai o início da produção mecanizada. Já a Segunda Revolução Industrial começou por volta de 1870 e se estendeu até o início do século xx. Ao contrário da primeira fase, países como Alemanha, França, Rússia e Itália também se industrializaram. O emprego do aço, a utilização da energia elétrica e dos combustíveis derivados do petróleo, a invenção do motor a explosão, da locomotiva a vapor e o desenvolvimento de produtos químicos foram as principais inovações desse período. A indústria automobilística assume grande importância nesse período. O trabalhador típico desse período é o metalúrgico. O sistema de técnica e de trabalho desse período é o fordista, termo que se refere ao empresário Ford, criador, na sua indústria de automóvel em Detroit, Estados Unidos, do sistema que se tornou o paradigma de regulação técnica e do trabalho conhecido em todo o mundo industrial. Ele nutria tantos amores a seus operários, que os submetiam às formas cruéis de trabalho. A forma mais característica de automação é a linha de montagem, criada por Ford (1920), com a qual introduz na indústria a produção padroni- zada, em série e em massa, em detrimento da força de Com o fordismo, surge um trabalhador desqualificado, que desenvolve uma função mecânica, praticamente anti-cognição crítica, extenuante e para a qual não precisa pensar o trabalhador. Pensar, para o capital, é a função de um especialista, de um engenheiro, que planeja para o conjunto dos trabalhadores dentro do sistema da fábrica. Mas este modo de produção capitalista ampliava o número de traba- lhadores assalariados dentro do modo de produção capitalista. No taylorismo-fordismo, a força de trabalho é elevada a mais alta ignorância, não apenas como força de trabalho, mas como ser humano. A tecnologia característica desse período é, portanto, o aço, a metalurgia, a eletricidade, a eletromecânica, o petróleo, o motor a explosão e a petroquímica. Ela incorpora, devido aos padrões técnicos e científicos de sua própria época – radicalmente diferente das nossas em forma e conteúdo –, as conquistas da humanidade daquele momento histórico. A eletricidade e o petróleo são as principais formas de energia que inauguram, no princípio do século XX, uma revolução. Por fim, a Terceira Revolução Industrial tem início em fim dos anos 1960 e início da década de 1970, tendo por base a alta tecnologia, a tecnologia de ponta (HIGH-TECH). A tecnologia caracterís- tica desse período técnico é a microeletrônica, a informática, a máquina CNC (Comando Numérico Computadorizado), o robô, o sistema integrado à telemática (telecomunicações informatizadas), a biotecnologia. Sua base mistura, à Física e à Química, a Engenharia Genética, Biologia Molecular. Sem falar ainda na nano- tecnologia, os novos materiais e a indústria aeroespacial. Ver: Castells, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. V. 1.
- MARx, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Novos Rumos, 1986, p. 84
Mas quais seriam as suas características desta quarta revolu- ção industrial que está a revolucionar os processos de produção e trabalho nos países capitalistas mais desenvolvidos?
O economista alemão Klaus Schwab dá algumas respostas e levanta tantas outras questões cruciais que modificarão a forma- ção econômico-social presente e futura e adverte que não estão claros todos os desdobramentos econômicos, sociais, trabalhis- tas, culturais e políticas decorrentes de tais modificações tecnoló- gicas. Ele é o criador e presidente do Fórum Econômico Mundial e coordenou uma ampla rede de especialistas das mais diferen- ciadas áreas do conhecimento humano e de todas as partes do mundo e o resultado foi a produção em 2016 do livro A Quarta Revolução Industrial .10
Considero esta obra a mais enciclopédica descrição das inova- ções científico-tecnológicas que já existem e as que estão em vias de existir, com base nos levantamentos feitos em todos os oligopó- lios e monopólios capitalistas integrados numa rede mundial de cientistas, produtores, fornecedores, e consumidores finais. A obra procura indicar possibilidades, limites, crises e oportunidades à sociedade, em particular aos capitalistas e aos trabalhadores.
Para Schwab, a quarta revolução industrial “teve início na virada do século (20) e baseia-se na revolução digital. É caracte- rizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores meno- res e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado da máquina).(…) As tecnologias digitais, fundamentadas no compu- tador, software e redes, não são novas, mas estão causando rupturas à terceira revolução industrial; estão se tornando mais sofisticadas e integradas e, consequentemente, transformando a sociedade e a economia global. (…) Ao permitir ‘fábricas inteligen- tes’, a quarta revolução industrial cria um mundo onde os siste- mas físicos e virtuais de fabricação cooperam de forma global e flexível (…) A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequencia- mento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. Nessa revolução, as tecnologias emergentes e as inova- ções generalizadas são difundidas muito mais rápida e ampla- mente do que nas anteriores, as quais continuam a desdobrar-se em algumas partes do mundo. A segunda revolução industrial precisa ainda ser vivia plenamente por 17% da população mundial, pois quase 1,3 bilhão de pessoas ainda não têm acesso à eletrici- dade. Isso também é válido para a terceira revolução industrial, já que mais da metade da população mundial, 4 bilhões de pessoas, vive em países em desenvolvimento sem acesso à internet. O tear mecanizado (a marca da primeira revolução industrial) levou quase 120 anos para se espalhar fora da Europa. Em contraste, a internet espalhou-se pelo globo em menos de uma década”.11
- SCHWAB, A Quarta Revolução Industrial. Trad. Daniel Moreira Moranda. São Paulo: Edipro, 2016.
Uma das expressões da implacável, vertiginosa e veloz revolução científico-tecnológica, que dá a luz à quarta revolução industrial, que está em seus estágios iniciais e localizada majoritariamente em pouquíssimos e ricos países,12 abarca e se manifesta em várias áreas através de numerosos elementos: inteligência artificial, robótica, a internet das coisas (máquina se comunicando com máquina sem a presença humana), tecnologia de sensores, veículos autômatos, armazenamento de energia, novos materiais, nanotecnologia, engenharia genética,13 impressão 3D (ou manufatura aditiva), computação quântica etc.
- SCHWAB, Klaus, op. cit., p. 16-17
- Diferentemente da I, II e III revoluções industriais, a IV já chegou ao Brasil e tende a se espalhar mais rapidamente. “Sete tecnologias já têm impactos dis- ruptivos (inovação que suplanta tecnologias existentes) em sistemas produtivos estratégicos da indústria brasileira: inteligência artificial, internet das coisas (IoT), produção inteligente e conectada, materiais avançados, nanotecnologia, biotecnologia e armazenamento de energia. Essas fontes de inovações vêm pro- vocando mudanças significativas em modelos de negócio, padrões de concor- rência e em estruturas de mercado para setores como agroindústria, química, petróleo e gás, bens de capital, automotivo, aeroespacial e defesa, tecnologia da informação e comunicação, bens de consumo e farmacêutico”. Ver: Machado,
No entanto, os quatro componentes-chave para a formação da Indústria 4.0 e que revolucionam o modo capitalista de produção de mercadorias, segundo Hermann, Pentek & Otto (2015), são:
- Cyber Physical Systems – CPS São sistemas que permitem a conexão de operações reais com infraestruturas de computação e comunicação
- Internet das Coisas (Internet of Things – IoT). É a rede de objetos físicos, sistemas, plataformas e aplicativos com tecnologia embarcada para comunicar, sentir ou interagir com ambientes internos e externos.
Ana Paula. “Estudo mapeia sete tecnologias que já mudam a indústria no país”.
<https://oglobo.globo.com/economia/sete-novas-tecnologias-ja-mudam-modo–de-producao-industrial-no-pais-21952865>. Acesso em: 26/11/2017.
- A inteligência humana deve defender e prolongar o bem estar da vida. A enge- nharia genética, como tudo o que existe, tem sua própria contradição interna. Defenda-se, portanto, a civilização e não a barbárie ou o bizarro. “Nesse con- texto, a manipulação genética envolve riscos e uma série afronta à dignidade humana (Constituição da República, art. 1º, III), que podem levar a humani- dade a percorrer um caminho sem retorno, por trazer a possibilidade de: a) obtenção, por meio da clonagem, da partenogênese ou da fissão gemelar de uma pessoa geneticamente idêntica a outra; b) produção de quimeras, pela fusão de embriões, ou, ainda, de seres híbridos mediante utilização de material genético de espécies diferentes, ou seja, de homens e de outros animais, formando, por exemplo, centauros, e minotauros, tornando as ficções da mitologia grega uma realidade, pois já se conseguiu camundongos com orelhas humanas; c) seleção de caracteres de um indivíduo por nascer, definindo-lhe o sexo, a cor dos olhos, a contextura física etc.; d) criação de bancos de óvulos, sêmens, embriões ou conglomerados de tecidos vivos destinados servir como eventuais bancos de órgãos, geneticamente idênticos ao patrimônio celular do doador do esquema cromossômico a clonar; e) produção de substancia embrionária para fins de experimentação; f) transferência de substancia embrionária animal ao útero da mulher e vice-versa para efetuar experiências; g) implantação de embrião manipulado geneticamente no útero de uma mulher, sem qualquer objetivo terapêutico; h) criação de seres transgênicos, ou seja, de animais cujo DNA contenha genes humanos, para que possam produzir hormônios ou proteínas humanas a serem utilizadas como remédio para certas moléstias; i) introdução de informação genética animal para tornar a pessoa mais resistente aos rigores climáticos; j) produção e armazenamento de armas bacteriológicas etc.”. Ver: Carneiro, Cláudia Aparecida Engenharia genética frente ao princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações ético-jurídicas . <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15894>. Acesso em: 26/11/2017
- Internet of Services (IoS). Quando a rede da IoT funciona perfeitamente, os dados processados e analisados em conjunto fornecerão um novo patamar de agregação de
- Fábricas Inteligentes (Smart Factories) Nas fábricas inteli- gentes, os CPS serão empregados nos sistemas produtivos gerando significativos ganhos de eficiência, tempo, recursos e custos, se comparado às fábricas 14
À primeira vista, conclui-se, com base nesses dados, que a relação produção social, trabalho social, distribuição social, consumo social nunca mais será a mesma. Um novo paradigma científico-social se impôs a alterar a sociabilidade humana.
Promove não só um conjunto de mudanças nos processos de manufatura, design, produto, operações e sistemas relacionados à produção, aumentando o valor na cadeia organizacional integrada e conectada, mas ao se fundirem, via internet, tecnologias dos mundos físico, digital e biológico, criando como que uma conexão universal nunca vista, impulsionam e realizam grandes e radicais transformações na economia, na produção, no comércio, nos servi- ços, nas finanças, na concorrência internacional, na sociedade, no Estado, no mundo do trabalho, na produção do valor, na cultura, nos sujeitos sociopolíticos, na comunicação, na informação, no modos, costumes, hábitos e estilos de vida, nas divisões internacio- nais do trabalho, do saber e da riqueza mundial.
A cada vez mais difundida e aceita a expressão quarta revo- lução industrial imprime, assim, os traços determinantes das inovações científico-tecnológicas que representam um processo objetivo, complexo, multifacetado, integracionista, potencial- mente irreversível, progressista, universalista, mas ao mesmo tempo contraditório, destrutivo e criativo, inclusivo e excludente, desigual, decorrente da fantástica e permanente revolução cien- tífico-tecnológica que vivemos há décadas e do processo de globalização – que encontra agora, e com mais força, adversários desde a extrema-esquerda, passando pela extrema-direita e até pela extrema-burrice.
- Ver: Panorama da inovação: indústria 4 .0 . Publicações Firjan: cadernos Senai de inovação. <file:///C:/Users/Eduardo/Downloads/sistema-firjan-indus- tria-4.0-2016.pdf>. Acesso em: 26/11/2017.
Se uma propriedade decisiva da Indústria 3.0 (Terceira Revo- lução Industrial) é ou foi a automação através da microeletrônica, robótica e programação, a Quarta é um salto qualitativo: combina tudo isso com a Inteligência Artificial.
“A Indústria 4.0 é a transformação completa de toda a esfera da produção industrial através da fusão da tecnologia digital e da internet com a indústria convencional.” afirmou Angela Merkel,15 a chanceler da Alemanha, país que, em 2011, durante a Feira de Hannover (Alemanha), criou um novo conceito da estratégia do governo alemão para o desenvolvimento de alta tecnologia para a manufatura do país: nasceu assim o termo Indústria 4.0, do alemão Industrie 4 .0, já chamada por muitos analistas como quarta revolução industrial.
Se na natureza do átomo às estrelas tudo se liga, o progres- sista, revolucionário, integracionista e globalizante binômio chip-internet unificou boa parte dos países de médio e alto desenvolvi- mento. A combinação chip-internet-algoritmo gera a Inteligência Artificial e eleva as forças produtivas a patamares mais altos.
3. O trabalho vivo e a inteligência artificial: o que vem por aí
As recentes conquistas revelam mais uma vez que as forças produtivas nunca permanecem invariáveis, estão sempre em processo de transformação. Diante disso, estaríamos diante daquilo que Marx vislumbrou como a superação total, cruel, radi- cal e lógica da presença do ser humano como integrante do processo de trabalho, que, na produção de valores de uso, passa- ria a ser tão somente supérfluo no processo de produção? Melhor dizendo, o processo de produção deixaria de ser um processo de trabalho vivo?
Se já em 1857-58, em os Grundrisse, Marx vislumbrara que a força humana de trabalho vivo direta seria suplantada, substi- tuída, trocada, eliminada pela maquinaria (que ainda não dispu- nha nem de internet nem de Inteligência Artificial), devido à progressiva aplicação da ciência e da técnica à produção e, porque não dizer, aos serviços, agora, com a combinação chip-internet-in- teligência artificial a produção de mercadorias radicaliza o processo que vai tornando cada vez o trabalho vivo em um compo-
- Panorama da inovação: indústria 4 .0. Publicações Firjan: Cadernos Senai de ino- vação.
nente supérfluo no processo de produção/serviços de mercado- rias, que passam a ser produzidas pelo trabalho humano objeti- vado na automação/robotização dotados de inteligência artificial. O robô ou toda expressão de automação, informação, cognição artificial, formas superiores do chip e dos softwares, criações humanas, conhecimento humano acumulado ao longo de pelo menos dez mil anos, por mais sofisticados que sejam, não nascem, primariamente, em árvores, cachoeiras mágicas, alienígenas, nem brotam do solo da terra e nem caem dos céus. “A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua atividade na natu- reza. Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada”.16
“Assim como com o desenvolvimento da grande indústria a base sobre a qual esta se funda – a apropriação do tempo de trabalho alheio – deixa de constituir ou criar a riqueza, do mesmo modo o trabalho imediato cessa, com aquela, de ser, enquanto tal, base da produção, por um lado porque se transforma em uma atividade mais vigilante e reguladora, mas também porque o produto deixa de ser produto do trabalho imediato, isolado, e é bem mais a combinação da atividade social a que se apresenta como a produtora”.17 O processo produtivo deixa de ser um processo de trabalho cujo elemento dominante é a força de traba- lho vivo. O que há de estudar? A transferência de valor
A revolução científico-tecnológica é global, ou seja, abarca todas as áreas.
A chamada Inteligência Artificial (IA) já vive em diversos (não totais) setores, não apenas manual, mas intelectual, dos siste- mas produtivos e de serviços e revoluciona a sociedade. Mas coloca ao capitalismo, que ele próprio gerou, o seu limite orgâ- nico: a sua própria superação. Sem força de trabalho como se gera a valorização do capital?
Pode-se, claro, defender que a ciência é a objetivação do conhecimento humano no ser concreto científico-técnico-material que realiza maravilhas e tragédias humanas. Se para um torneiro mecânico da Panex (produtora de panelas em São Bernardo do Campo, que fechou suas portas neste ano de 2017), vê a sua transição de um assalariado metalúrgico a uma situação socioeconômica-familiar-existencial desassalariada e supérflua e – vendo sua vida tornar-se dramática e desesperadora para si e para sua família – vendo arrebatadoramente a tendência de que as panelas sejam feitas por robôs, como ele e sua família viverão? O capita- lismo dá resposta a este fenômeno? O Estado de Bem-Estar Social, combatido pelo capital, terá uma correlação de forças favorável a prover os desprovidos? São questões em aberto.
- MARx, Karl. Grundrisse: lineamientos fundamentales para la crítica de la eco- nomia política (1857-1858) . 2. Carlos Marx & Federico Engels. Obras Funda- mentales. Trad. Wenceslao Roces. 1. ed. México: Fondo de La Cultura Econó- mica. 1985, p. 115.
- Ibidem, p.
Vale assinalar que tal processo de transição, contradição, entre inteligência artificial e inteligência humana envolve profis- sões também da chamada força de trabalho intelectual e manual. Muitas profissões manuais e intelectuais desparecerão. Estamos diante de uma fabulosa revolução que não se restringe à produ- ção, aos serviços, ao trabalho, mas impacta toda a civilização.
Será este o tema que será trabalhado na segunda parte desta reflexão.
* Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp e economista da União Geral dos Trabalhadores (UGT)