Nesta hora, às vésperas da eleição de 2018, é útil lembrar não só o pleito de 1989 pela grande dispersão das correntes políticas que levou à vitória de um presidente messiânico, mas também as eleições de 1994 que consolidaram um momento democrático-construtivo que vinha se desenvolvendo a partir do impeachment de Collor. Este pleito, como dizia o presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, no seu discurso de despedida do Senado, proferido em 14 de dezembro de 1994, abria o caminho para se evitar o pior dos cenários que era o marasmo de uma democracia representativa formal, esvaziada de conteúdo econômico e social pelas pragas do elitismo, do fisiologismo e do corporativismo.
Então, ele seguia dizendo que o Brasil vivia não apenas um somatório de crises conjunturais, mas o fim de um ciclo de desenvolvimento, pois a manutenção dos padrões de protecionismo e intervencionismo sufocava a concorrência necessária à eficiência econômica e distanciava cada vez mais o Brasil do fluxo das inovações tecnológicas e gerenciais que revolucionava a economia mundial. Fernando Henrique divisava na circunstância da globalização da época a oportunidade para um novo ciclo de desenvolvi- mento, desde que aqui se levassem adiante reformas reestruturantes da economia, num amplo contexto de desestatização da vida nacional, mobilizando a política e a sociedade civil pluralista que se dinamizara com a conquista das liberdades democráticas.
As diretrizes de governo, apresentadas naquele discurso, se opunham às experiências autoritárias do passado, particularmente ao modelo de modernização econômica e de organização da sociedade que se consolidara na Era Vargas, em moldes de uma revolução nacional-popular por meio da expansão das funções administrativas para estruturar de cima para baixo várias esferas da vida nacional, como ocorreu na economia, nos sindicatos, nos meios de comunicação e na cultura.
Em primeiro lugar, Fernando Henrique se propunha aprofundar o processo de estabilização macroeconômica iniciado no governo pluripartidário de Itamar Franco, do qual fora ministro da Fazenda, não como um fim em si mesmo, mas como condição para o crescimento sustentado da economia e para o resgate da dívida social. Defendia medidas que rompiam com o desenvolvimentismo à moda antiga baseado na pesada intervenção estatal, seja através da despesa, seja através dos regulamentos cartoriais.
O objetivo do seu governo era aumentar as taxas de investi- mento, cujos pilares justamente radicavam na confiança na estabilidade econômica do país e na construção de um marco institucional que permitisse à iniciativa privada exercer “na plenitude o seu talento criador”. Instaurar “uma verdadeira democracia econômica e social”, como ele chamava, requeria que a ação do Estado se voltasse para as maiorias menos organizadas ou inorganizáveis: os consumidores, os contribuintes, os pobres e os excluídos. Para isso, continuava o presidente eleito o seu discurso, seria preciso resgatar o Estado da pilhagem dos “interesses estratégicos”, das “conquistas sociais” exclusivistas, do corporativismo, em suma, dos privilégios que distorciam a distribuição de renda.
O segundo ponto do programa de governo de Fernando Henrique se voltava para a abertura da economia ao mercado mundial daqueles anos 1990. Na contramão da grande maioria das correntes de esquerda, ele via a integração do país à globa- lização como um processo progressista e incontornável, sendo necessário superar o modelo da industrialização substitutiva das importações oriundo da Era Vargas. Fernando Henrique conferia à política de “Exportar para importar” um sentido estra- tégico, argumentando que se devia importar equipamentos e insumos para acelerar a modernização e a expansão da indús- tria, da agricultura e dos serviços domésticos. E importar bens de consumo, mantendo uma proteção tarifária moderada para que os preços internos se aproximassem dos preços internacio- nais, e os ganhos de produtividade já ocorridos e por ocorrer se transferissem para o conjunto da sociedade.
Esse era o caminho que lhe apontava a experiência das economias capitalistas maduras para combinar crescimento e distribuição de renda. Ele também propunha ações para impulsionar o desenvolvimento tecnológico das indústrias (“e para seu financia- mento a juros aproximados das taxas internacionais”). Manter e aumentar a competitividade das exportações não significava a volta do protecionismo. Esperava que as medidas permitissem, por um lado, novos ganhos de produtividade às empresas e, por outro lado, aumentassem a eficiência sistêmica da economia, reduzindo o chamado “custo Brasil”. Fernando Henrique se referia a variadas providências que iam desde a eliminação de impostos sobre as exportações até a melhoria das estradas e dos portos cujo mau uso encarecia a produção nacional.
A terceira diretriz do discurso de 1994 redefinia a questão da relação entre o Estado e o mercado buscando que o eixo do novo ciclo econômico passasse da atividade produtora do setor estatal para o setor privado. O Estado tinha presença-chave no desenvolvimento, desempenhando função regulatória, não no sentido de espalhar regras e favores a “torto e a direito”, como ele dizia, mas de criar um marco institucional que assegurasse “plena eficácia ao sistema de preços relativos”, incentivando os investimentos privados na atividade produtiva. O princípio geral da regulação visava à eficiência do mercado, oferecendo à indústria brasileira condições semelhantes às dos concorrentes externos. Fernando Henrique tocava num outro tema arraigado na cultura empresarial brasi- leira, inclusive na própria atividade política, quando mencionava a necessidade de se desmontar as antigas regulamentações que davam proteção cartorial a determinados setores. Ele sublinhava que o objetivo da ação reguladora se centrava na reafirmação da vocação industrial da economia brasileira e de sua base tecnológica, sendo imprescindível não perder de vista a meta de conferir- lhe dinamismo e competitividade no tempo da globalização.
A quarta diretriz das reformas propostas objetivava dar sustentabilidade ao processo de desenvolvimento, constituindo uma moderna infraestrutura econômica e social por meio de novas formas de parceria entre o Estado, a empresa e a comunidade. O presidente eleito fazia referência a medidas destinadas aos setores de energia, transportes e telecomunicações; e ao chamado (“impropriamente”) “capital humano”. Em relação à primeira infraestrutura, dizia ser fundamental ampliar o conceito de privatização com vistas a aumentar a eficiência geral da economia desde que se fizesse acompanhar do fortalecimento da “autoridade pública” (“agências controladoras”). Na sua visão, a parceria com a empresa privada na infraestrutura econômica abria espaço para que o Estado investisse mais em saúde, em educação, em cultura, em segurança; investisse mais no essencial, no seu povo (“o maior ativo estratégico de um país”). Essa tarefa, frisava ele, vinha junto com o “imperativo ético” de incorporar ao processo de desenvolvi- mento os milhões de excluídos pela miséria, observando ser necessário superar a “zona cinzenta do clientelismo e da corrupção”.
Para o êxito das políticas sociais, Fernando Henrique atribuía grande protagonismo à comunidade, realçando o papel das ONGs (que preferia chamar de “organizações neogovernamentais”), entendendo-as como formas inovadoras de articulação da sociedade civil com o Estado; por isso igualmente “sujeitas à prestação de contas e ao escrutínio público”. Nesse campo da infraestrutura social, a descentralização e a parceria com a comunidade passavam a ser as linhas mestras das ações do seu futuro governo, cumprindo papel chave para universalizar o acesso aos serviços de saúde e “a um ensino fundamental de boa qualidade”.
Às vésperas de assumir a Presidência da República, ele se propunha discutir com o mundo político as medidas legislativas para dar curso às reformas. Mencionava uma agenda constitucional, que já estava posta na cena pública, para remover da Carta de 1988 os “nós que atam o Estado brasileiro à herança do velho modelo, e algumas impropriedades que, assim recordava o presidente eleito, “nós, constituintes, acrescentamos para nossa conta”. Ele aludia às revisões constitucionais sugeridas por Itamar Franco e a outras que tramitavam no Congresso (o “solucionador de impas- ses”), citando as reformas fiscal, tributária, previdenciária, orça- mentária; e também as medidas sobre o capital estrangeiro, monopólios estatais etc. Além dessas reformas no plano econômico, Fernando Henrique se referia a diversos temas constitucionais que precisavam ser redimensionados, dentre os quais os direitos e obrigações dos servidores públicos, as relações de trabalho, a organização sindical e a organização do Poder Judiciário. Incluía a reforma política, especialmente o sistema eleitoral, defendendo o sistema distrital misto alemão. Observava ainda que o detalhismo da Constituição de 1988 provocara o efeito indesejado de despolitizar e tribunalizar decisões, dizendo que matérias mais próprias de lei ordinária ou de programa de governo, “uma vez congeladas na Constituição, ficam excluídas do processo político normal”.
Lembrar o discurso de Fernando Henrique, proferido em 1994, avulta o contraste entre o caráter construtivo dos seus governos e a Era Lula. Durante os seus dois mandatos, as diretrizes então anunciadas ensejaram transformações em diversos setores da economia, nas políticas públicas e na própria estrutura do Estado. A partir de 2003, muitas dessas mudanças foram mantidas, mas perderam nas ações dos governos de Lula e Dilma o nexo que ligava o Estado, a economia e a sociedade como esferas diferenciadas da formulação originária de 1994, cujo foco era o desenvolvimento econômico sustentável na circunstância da globalização visando assegurar uma sociedade aberta e de cultura política liberal-democrática.
Ao contrário, na visão que hegemonizará as atuações dos governos petistas vai predominar a questão da posse do aparelho do governo como base para um regime social de outro tipo. A participação do PT, inclusive dos movimentos sociais, nas estruturas estatais passará a ser mobilizada em termos de uma ocupação de mais e mais áreas do Estado. Para isso concorria o fato de seus principais protagonistas não terem compromisso com a democracia política, pois sempre desconheceram a questão demo- crática posta na esquerda brasileira, há muitos anos atrás.
Chama atenção o traço – próprio do populismo – de os governos de Lula e Dilma não darem valor fundamental às transformações da esfera propriamente produtiva que era o cerne do programa de Fernando Henrique de 1994. O desinteresse por este tipo de reestruturação de sentido construtivo é o que, além das vicissitudes que advêm da crise da economia internacional, sobretudo no governo de Dilma, leva, afinal, à desorganização da economia e de outras áreas da vida nacional ao fim da Era Lula.
Também são expressivos daquela visão de poder o apelo do “nós e eles” com que Lula e o PT, ao longo do tempo, procuraram polarizar a vida social e política do país, e o fato de o segundo governo de Dilma, isolado politicamente em 2016, recorrer à mobilização das suas próprias forças para dentro de si como forma de luta contra os que considerava seus inimigos externos. As avaliações oficiais do PT, feitas logo após o impeachment da presidente Dilma, lamentando não ter radicalizado aquela estratégia de poder, revelaram que o esgotamento da Era Lula foi o fracasso de uma experiência assemelhável a uma revolução nacional-popular.
* Raimundo Santos é autor do ensaio introdutório ao livro O marxismo político de Armênio Guedes, FAP/Contraponto, Brasília/Rio de Janeiro, 2012