A covid-19 indica a ciência como caminho para aproximação com os Estados Unidos
A cooperação internacional não é a praia de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro. Mas é campo fértil e promissor para cientistas do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países com história de combate a epidemias trabalharem juntos para decifrar a covid-19, conter o contágio e desenvolver uma vacina para o vírus que já matou dezenas de milhares de pessoas e poderá matar milhões.
“A Índia e o Brasil têm grandes indústrias de vacina”, escreveu Donald G. McNeil Jr., do New York Times, em ampla reportagem publicada no domingo sobre o longo caminho à frente para conter o vírus. Epidemiologistas dos EUA, da Índia, da China, da França e do Reino Unido sabem que o desenvolvimento científico no Brasil nasceu do combate a epidemias e endemias, como escreveu Simon Schwartzman em Um Espaço para a Ciência, uma história da formação da comunidade científica no Brasil, fundada por médicos pioneiros, como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas e Adolfo Lutz, na virada do século passado. Vem do legado desses gigantes a boa tradição de nossa medicina sanitária, reconhecida mundo afora e que permitiu ao País, em tempos recentes, enfrentar com sucesso as epidemias de HIV-aids, Sars e zika.
Não é somente na ciência que o Brasil pode e deve agir em interesse próprio e da humanidade e contribuir para conter o flagelo da covid-19. Arthur Silverstein, um historiador da medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, sugeriu, na mesma reportagem do New York Times, que o governo americano assuma o controle e esterilize grandes cubas de fermentação de cervejarias e alambiques de produção de bebidas destiladas e os ponha a serviço da produção em grande escala de uma vacina segura, quando esta for descoberta. Eis aí um convite à Ambev e aos grandes fabricantes de cachaça para redirecionar parte de sua capacidade de produção para o bom combate à pandemia.
A cooperação brasileira pode ir além, se governantes como Trump e Bolsonaro deixarem de usar o flagelo para fazer demagogia com coisa séria e ouvirem o conselho de cientistas como a médica Luciana Borio. Nascida no Rio de Janeiro, Luciana Borio trabalhou na unidade de prevenção de pandemias criada no Conselho de Segurança da Casa Branca na administração do republicano George W. Bush, fortalecida pelo democrata Barack Obama e esvaziada em 2018, sabe-se lá por quê, por Trump. Formada pela Escola de Medicina da Universidade George Washington, na capital americana, a médica atuou como cientista chefe da Food and Drug Administration e não tem paciência para conversas sobre as virtudes cantadas por Trump e seu seguidor brasileiro do remédio antimalária cloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento dos males causados pela covid-19. “É um completo absurdo”, afirmou ela ao Times. “Disse à minha família que, se eu pegar a covid, não me deem esse coquetel.”
O potencial de colaboração na luta contra a pandemia entre cientistas, empresários e formuladores de políticas públicas nos dois países indica o caminho de relações produtivas que o Brasil e os Estados Unidos podem construir para além da retórica diplomática vazia. Foi o que aconselhou Thomas A. Shannon em palestra no Wilson Center, no final de 2013, depois de servir como embaixador dos EUA em Brasília. O diplomata afirmou que a conectividade crescente entre os dois países em vários campos tornaria suas sociedades os vetores principais do relacionamento entre os dois países e mais importante do que as ações dos governos.
Hoje, os governos Trump e Bolsonaro, populistas ultraconservadores adeptos da estratégia do caos, não apenas não ajudam, como atrapalham. Isso foi ilustrado há poucas semanas pelo injustificável desvio, por ordem da Casa Branca, de respiradores e materiais de proteção hospitalar comprados na China pelo governo da Bahia, durante uma escala em Miami. De nada adiantou a suposta proximidade entre Trump e Bolsonaro ante a necessidade premente do líder americano de lidar com as consequências da resposta tardia e errática que deu à pandemia, interceptando em aeroportos dos EUA voos carregados de mercadoria médica destinados não apenas ao Brasil, mas também ao Canadá, à Alemanha e à Espanha.
A perda de popularidade de Trump e suas chances minguantes de reeleição em novembro, que o levam a atribuir a adversários internos e externos a culpa pela calamidade econômica e social que o flagelo do vírus provoca nos EUA, promete novas frustrações entre Washington e Brasília. O presidente brasileiro é visto com repugnância por assessores para a América Latina da campanha do ex-vice-presidente e ex-senador Joseph Biden, democrata que terá a incumbência de tirar Trump da Casa Branca. Essa é mais uma razão para que os interessados no Brasil no aprofundamento de um diálogo consequente com os Estados Unidos torçam por Biden e apostem em ações que envolvam uma maior cooperação entre cientistas, educadores, empresários e líderes de organizações sociais e culturais dos dois países.
* JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WOODROW WILSON CENTER, EM WASHINGTON