Frustrarei alguns dos ainda poucos leitores ou ouvintes regulares desta coluna, ao não comentar diretamente o desfecho de eleições recentes para as mesas da Câmara e Senado. É que estou escrevendo um artigo sobre esse assunto, que será publicado, em breve, pela revista eletrônica “Política Democrática”. Quem ainda não estiver saturado de informações, interpretações e conclusões sobre isso poderá acessar a revista, na próxima semana. De todo modo, o tema de hoje deriva daquele. É, por assim dizer, um efeito colateral do desfecho da disputa da Câmara, que vem sendo tratado – a meu ver, indevidamente e não inocentemente – como se fosse uma causa. Trata-se do posicionamento político do DEM.
Cultivo o hábito, hoje meio fora de moda, de avaliar, de saída, a posição de políticos e partidos pelo que eles declaram em público. A declaração tem valor em si, porque – salvo em casos limite, devidamente comprovados, de desprezo pela razão e uso contumaz da mentira – compromete o declarante, além de provocar ações de terceiros, que a tomam como baliza. De modo complementar, fazer reflexões para avaliar se estão sendo verazes, usando, como evidências, fatos e informações cruzadas de outras fontes, mas sempre pondo-as na condicional, sem fazer conjecturas passarem por veredictos. Pior do que a benevolência acrítica é o criticismo imprudente. Por isso, parto da entrevista concedida, pelo presidente nacional do partido em foco, ao jornal Folha de São Paulo, no último dia 3.
O título da matéria é “DEM não vai com extremos em 2022, mas não posso descartar agora estar com Bolsonaro, diz ACM Neto”. Quem foi além do título e leu a entrevista, viu que essa não foi uma declaração da iniciativa do entrevistado e sim uma resposta sua a uma pergunta direta do jornal. Leu também, no restante da mesma resposta, uma pergunta feita pelo político baiano: Qual Bolsonaro vai ser? O dos dois últimos anos que passaram? Não queremos. Agora, haverá um reposicionamento? Para a construção de algo mais amplo, que não fique limitado à direita? Não sei.” O título da matéria reproduz o núcleo da resposta e destaca o que nela suscita mais polêmica. O contexto da polêmica é a divisão do DEM na disputa da Câmara dos Deputados, fato que já vinha sendo interpretado, predominantemente, nos meios de comunicação, sob a chave da “traição”, da maioria da bancada e do presidente do partido, ao deputado Rodrigo Maia. Como estratégia jornalística, tudo certo, o entrevistado perderá tempo em reclamar.
O uso político da notícia-título, nos dias subsequentes, tem sido intenso e sem alusão ao complemento da resposta do entrevistado. Soltos os freios, as especulações abundam. Segundo elas, o presidente do DEM já indicou o mesmo virtual ministro para as pastas da Educação e da Cidadania, já está cotado para vice de Bolsonaro e esse último pode se aboletar no DEM. Alguma terminará acertando o alvo porque o que vale para qualquer partido não vale do mesmo modo para seus membros, individualmente. O padrão de independência política declarado pelo DEM com base nessa premissa não é contestado pelo palácio. Prova isso a permanência de quadros do partido em ministérios desde 2019, inclusive durante surtos milicianos do capitão, mesmo quando Mandetta, Maia e o próprio Neto se posicionavam, pontualmente, contra várias posições e iniciativas suas. Por que seria diferente agora quando Bolsonaro faz uma performance de político “normal”?
O padrão seletivo das especulações tem favorecido quem aposta em racha definitivo do DEM, animado pelo fato de destacados quadros do partido assumirem hoje uma nítida atitude de oposição, enquanto outros quadros se declaram independentes e outros ainda ocupam ministérios. Para se ter uma ideia da complexidade do quadro, é preciso ver que, além de tradicionais políticos regionais e daqueles da clientela do varejo, que não particularizam qualquer partido, dada a sua difusão em diferentes quadrantes ideológicos (os partidos do chamado centrão não se diferenciam por terem esse tipo de político mais que outros partidos e sim por quase não terem outros tipos além dele), convivem, no DEM, expressões carimbadas de várias espécies de centro, direita e centro-direita.
Sem pretender ser exaustivo, cito figuras hoje facilmente consideradas no chamado centro liberal democrático (como Rodrigo Maia e mais recentemente Luiz Mandetta), um exemplar de direita sem conexão fácil com qualquer centrismo (governador Caiado), um liberal ativista ao molde de Kin Kantaguri; um pragmático conectado com a extrema direita (Onix Lorenzoni), além de uma expressão política do agro negócio, a ministra Teresa Cristina e da mais recente aparição, na primeira cena da política, como presidente do Senado, de Rodrigo Pacheco, quadro de um conservadorismo moderado que lembra o estilo Marco Maciel, duas vezes vice-presidente da República, com a aparente vantagem de, no mineiro, a moderação sobressair mais do que o conservadorismo.
Quem quer analisar esse conjunto de crenças, interesses e configurações regionais, sem apenas fazer política com sua crise, precisa evitar etiquetas puras, colocar estratégias jornalísticas entre parênteses e prestar atenção às palavras de quem preside esse intricado mosaico, ele mesmo um caso complexo, herdeiro de uma tradição conservadora e pragmática que interagiu com autoritarismo e democracia e, com o tempo, foi adquirindo perfil liberal em trânsito na direção do centro, sem com isso perder seu pragmatismo.
Combinemos: se o presidente nacional do DEM dissesse em público que o nome de Bolsonaro está descartado como opção para 2022, essa não seria uma fala de oposição? Motivos não faltam para se fazer oposição no momento, mas acontece que o DEM não é oposição. É ambivalente. Uso essa palavra sem a conotação pejorativa que a ela se costuma dar, como se fosse um desvio de conduta política. Não é. Frequentemente, a ambivalência é uma atitude política positiva, que corresponde à ambiguidade de uma situação concreta. Nesses casos, político que quiser se livrar dela, vai parar na doutrina ou na demagogia.
Pode-se argumentar – e a meu ver com bastante razão – que o fator Bolsonaro desidrata o ambiente político da ambiguidade que poderia justificar uma ambivalência de posição. Tolerar ataques extremistas a granel sem um enfrentamento firme enfraquece moralmente a democracia porque vai rebaixando as crenças da sociedade em relação às instituições. Por outro lado, o fato de o extremismo ter chegado ao palácio e a isso juntar-se uma pandemia cria uma situação perigosa, levando a um argumento diferente, que também tem sua razão: é preciso defender a democracia dos ataques extremistas, mas também haverá risco institucional para ela se não se agir com moderação quando o presidente extremista ainda tem apoio popular e construiu uma base no Congresso. É fato que o DEM vem seguindo essa linha prudencial, desde o começo do governo Bolsonaro.
Nos limites da habilidade e clareza possíveis, o presidente do DEM disse que o Bolsonaro desses dois anos (o Bolsonaro real) não terá seu apoio, que o partido não quer nada com extremos nem seguirá algo que se limite à direita. Mas que em nome das prioridades do país, no contexto de pandemia, é preciso mediar e reduzir o conflito político e adiar o momento de opções eleitorais, para que se consiga clima de governabilidade e cooperação. Trata-se de um reposicionamento? Penso que não. É a mesma política de conciliação que o DEM vem pregando e praticando desde que o governo começou. Com essa estratégia conduziu-se na Câmara, sob o comando de Rodrigo Maia, no Ministério da Saúde dirigido por Luiz Mandetta e, em contexto mais limitado, com o próprio ACM Neto na prefeitura de Salvador, inclusive atuando em cooperação com o governo estadual adversário, durante a pandemia. Política nacional de conciliação que se combinou com alianças ao centro e até com a centro-esquerda nas eleições de 2020. E que se expressa agora na base de alianças que elegeu Rodrigo Pacheco presidente do Senado e na sua postura política.
Afinal, não era exatamente essa política que, semanas atrás, chamei, elogiando sua eficácia, de “estratégia maricas”, a mesma política que levava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a ser acusado de conivente com Bolsonaro? Assim como não estava de acordo com essa crítica, penso que também não procedem as que hoje se dirigem ao presidente do DEM. Adesismo ao governo e estratégia maricas podem ter pontos de intersecção (eis a ambivalência) mas não são sinônimos. É possível discutir razões que passaram a levar quadros do DEM, como Maia e Mandetta, a preferirem o caminho aberto da oposição e até a flertarem com a ideia do impeachment. Diante da derrota da campanha de Baleia Rossi na Câmara, resolveram alterar a conduta, talvez até mudar de estratégia. Juntam-se à oposição, achando ser esse, nas circunstâncias seguintes à derrota na Câmara, caminho melhor para derrotar Bolsonaro e seu governo. Pode ser que estejam mais certos do que ACM Neto. Mas o reposicionamento é deles e não do partido ou do seu presidente.
Até onde posso imaginar a profundidade das feridas, o DEM retirou-se do bloco de apoio a Baleia Rossi porque não foi possível chegar a um acordo com Maia em torno do partido permanecer no bloco e aceitar-se a liberação da bancada, sabendo que a maioria ficaria com Lira. Foi essa a solução achada no PSDB, que também foi majoritariamente para Lira. Com todo desacordo interno, é no mínimo duvidoso que o DEM tenha virado centrão, ou tenha rompido com a perspectiva de frente ou de frentes democráticas. Esse risco existe, é claro, mas parece longe de ser favas contadas. O desfecho na Câmara foi de afastamento por razões diversas, que incluem o fisiologismo político, mas a ele não se restringem (tratarei disso no artigo da PD). Foi derrota importante da frente democrática para a qual as defecções no DEM decerto contribuíram. Mas a larga margem da derrota indica que a avaliação das causas não conduz a explicações simplórias. Muito menos a se considerar o DEM território inóspito para, por exemplo, uma eventual candidatura presidencial de Luiz Henrique Mandetta surgir e ter boa receptividade no centro e áreas da centro-esquerda.
Chego assim ao último ponto que quero abordar neste texto. O ex-ministro da Saúde tem dado sinais bem recentes de que interpreta o cenário político de modo diferente do ponto de vista que estou tentando aqui expressar. Fala-se que, assim como Rodrigo Maia, estaria considerando deixar o DEM e ingressar em algum partido menor que abrace a sua pre candidatura. Paciência! Se acontecer, não será a primeira nem será a última vez que discrepância parecida ocorre entre as perspectivas de um ator e de um espectador.
Tentarei ser sintético. Militares do palácio e o centrão estão oferecendo a Bolsonaro uma chance de se customizar para 2022. Conseguirão baixar sua rejeição e torná-lo competitivo numa eleição em dois turnos (algo que, hoje, não é)? Não sei, ninguém sabe. Mas esses agrupamentos governistas, não necessariamente bolsonaristas, parecem dispostos, mais uma vez, a maquiar o miliciano, agora com mais decisão. Dando certo, mergulharão o país numa aventura mais radical de extrema direita, após as eleições. É possível, como já disse nesta mesma coluna, que a customização tenha um sentido de ultimato. Batendo fofo, a opção é usar a posição institucional de Arthur Lira pra abrir caminho a uma espécie de Rússia, com Mourão, que passa por estraçalhar, casuisticamente, a Constituição. Aliás, se o estupro da Carta avançar até o sistema eleitoral talvez dê pra seguir com Bolsonaro mesmo, desafiando a sua rejeição. A solução russa não faz questão de patente.
Quais as evidências de que essa é, ou possa vir a ser, a aposta do DEM? Vamos pensar se é sensato, sem tais evidências, supor que tenha esse horizonte quando se nega a sair da posição de independência para a oposição. Vejo mais evidências de que aposte em ser a alternativa política e eleitoral da reconciliação do país, possível quando a maquiagem improvisada de Bolsonaro borrar. A incerteza maior que a novíssima conjuntura traz é que essa alternativa pode se tornar inviável, se as saídas do partido de Maia, Mandetta e do vice-governador de São Paulo se confirmarem e se derem em tom de rompimento.
Claro que a Bahia também está no meio disso. A negação dessa suposição intuitiva foi um momento em que ACM Neto não pareceu veraz. Como qualquer político, tem aspirações e ambições pessoais. Quer ser governador e para isso é bom estar nacionalmente junto do PP e do PSD, aliados do PT na Bahia e, também, perto de centros gerenciadores de decisões governamentais. Mas isso não quer dizer que pretenda correr o Estado com Bolsonaro a tira colo. Quem conhece minimamente o que se passa na Bahia pode avaliar o que ele teria a perder com isso. A esquerda baiana bem o sabe e por isso esfrega as mãos para que esse casamento de raposa aconteça, ou pareça que vai acontecer. O pragmatismo evidente do presidente nacional do DEM também não quer dizer que sacrificaria o papel mediador do partido que preside nacionalmente por uma aspiração provinciana. Vou concluir com isso.
Aparências não devem enganar. A tradição política que o DEM herdou na Bahia apela, em alguns momentos, a um discurso bairrista. Mas é uma tradição baiano-nacional. Escrevi um livro sobre origens e implantação do carlismo (“Tradição, autocracia e carisma: a política de Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia, 1954-1974” – Ed. UFMG), dizendo isso. Foi publicado em 2004. A atualização sairá este ano e cobrirá o auge e o declínio do seu poder. O DEM, na maré vazante, aprendeu a manejar seletivamente sua tradição. Na Bahia, caminhou devagar em direção ao centro e hoje já se entende com parte da esquerda não governista. E não havia escolha, já que os partidos de direita e centro direita, satélites do PFL no tempo de ACM, tornaram-se (ainda são) aliados do PT, no Estado. O car1ismo acabou. Resta a memória, emulada por diversos, até opostos, partidos. Boa parte da Bahia sabe disso. Setores da imprensa nacional precisam se despedir do avô.
Se há uma percepção que vai da direita democrática à esquerda, é a de que Bolsonaro e democracia pluralista não combinam. O presidente nacional do DEM é um liberal pragmático, mas não um político de voo solo. Irá aonde o campo liberal brasileiro for. Não há sinais, até aqui, de que esse campo pode seguir na contramão da democracia.
*Cientista político e professor da UFBa