“Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão
(Gilberto Gil, “Meio de campo”)
Devo a Luiz Sergio Henriques, amigo, parceiro, botafoguense roxo, acostumado a remar contra a maré, a dica poético-musical para inspirar um artigo sobre política brasileira em semana tão áspera. Parte da aspereza é notar como é difícil, a qualquer bom meia armador, fazer trabalho de costura e ligação quando a tática da moda confia mais em zagueiros e virtuais artilheiros.
Este texto destoa da lógica que orienta pedidos, de boa-fé ou não, para que o Presidente da Câmara dos Deputados se imponha ao tempo e à experiência e aja como senhor da razão, disparando um processo de impeachment contra um Presidente da República aprovado por um terço dos brasileiros e apoiado, no momento, por parte considerável da própria Câmara. Apesar dessas más notícias, acham que o gesto não importaria tanto por suas consequências práticas, mas por despertar a sensação de não se estar parado. Ela parece vital, para esses cidadãos mobilizados, como oxigênio para os pacientes objetivamente exasperados de Manaus
Certamente essa consciência cívica foi atiçada, de alguns dias para cá, por aquilo que muitos pensam ter sido uma boa lição da vitória que a sociedade norte-americana e seu sistema político acabam de lograr contra Donald Trump. O gosto de imitar o que vem “de lá”, faz louvar o uso político que ali fazem de um processo de impeachment como se devêssemos aprender a fazê-lo, sem considerar que lá, ao contrário de aqui, o processo não implica em afastamento imediato do presidente do cargo, até o julgamento pelo Senado. E como se essa medida simbólica, ao “enodoar” Trump, pela segunda vez, fosse parte da vitória e sintoma do seu merecimento.
Desculpem, mas a meu ver, ela expressa uma prodigalidade de democratas exaltados e embriagados pelo sucesso eleitoral. Confundiram o espaço aberto pela vitória de Biden com senha para abolir o trumpismo por voluntarismo institucional. O que se diria de um processo de impeachment de um presidente em rito sumário – sem ferir a letra da Constituição, mas ignorando a tradição de formar uma Comissão de Justiça para instruir o processo antes da decisão – caso a proeza fosse cometida no Paraguai? Certamente algo diferente do reconhecimento da “robustez” do sistema norte-americano e das virtudes cívicas (leia-se coragem) de seus líderes e cidadãos. Por outro lado, analistas que apontam, compenetrada e burocraticamente, diferenças entre Brasil e EUA, conseguem, em geral, ver duas. Lá tem cadeia pra valer; lá não se baixa a cabeça. Óbvio que a comparação desfavorece o Brasil na linha de criticar “jeitinho” e conciliação como marcas de atraso.
Além de incidir no cacoete que Nelson Rodrigues nomeou – e Eduardo Gianetti traduziu em sociologia política – como “complexo de vira-lata”, essa sentença incorre em distração quanto ao fato de Biden ter sido eleito empunhando enfaticamente a bandeira da conciliação do país, não a da confrontação com um extremista tão criminoso como o daqui. E de ter sido essa também a sinalização firme e serena das instituições quando o crime invadiu o Capitólio. Em vez de se acusar sumariamente o criminoso, ele foi primeiro instado a recuar e a desfazer o que tinha feito. A justiça republicana é um prato servido frio, Trump e os arruaceiros não perdem por esperar, mas perigos emergenciais têm prioridade temporal sobre a sede de justiça. Já o gesto pelo impeachment sumário, antes da posse de Biden, vai em direção oposta a essa orientação e à mensagem das urnas. Colocou uma bola na marca do pênalti para que Trump chutasse. Ele fez isso com uma fala de pomba, tentando roubar o discurso pacificador de quem o venceu. Quem não sabe perder pode se aproveitar de gente afoita, que não sabe ganhar. Há república na América para moderar, não para consagrar excessos de apetite político de vencedores, nem justificar ressentimentos de perdedores. Essa a sua robustez, a lição que vale aprender.
A elite política brasileira, depois de patinar e se fragmentar, até 2018, perante a blitz da Lava Jato e outras operações conexas, usa sua expertise histórica em conciliação política (que deve ter raros rivais no mundo) para resistir a ataques do bolsonarismo. A partir da pandemia, a cada sensação de perigo fabricado pela aliança entre governo e vírus, tem-se o alivio de ver que o capitão não pode tudo e, embora tenha voltado a veicular imprecações contra a democracia, manda cada vez menos. Desde o começo da pandemia, Bolsonaro ameaça, desgoverna, adia, transtorna, sabota, mas não impede que .coisas importantes andem. Como bem lembra a jornalista Dora Kramer, os fatos mostram que além de nas últimas eleições ter prevalecido o valor do comedimento sobre a exacerbação, o presidente da República e companhia só fazem perder uma atrás da outra para as instituições.
O Brasil chega também a dar outras lições, como a do massivo, plural, transparente e seguro sistema eleitoral aqui instituído, no qual os norte-americanos não fariam mal em se inspirar. Desculpem de novo, mas não é a democracia ou a república que agoniza entre nós e sim concidadãos de carne e osso que precisam delas em modo normal, para salvar suas vidas. Sob perigo iminente estamos todos. Precisamos de vacina e também, para que ela não tarde ainda mais, de um reforço do meio de campo político, para unir a república à sociedade e isolar o adversário comum, inclusive privá-lo, judicialmente, se preciso, de condições de orquestrar a sabotagem da máquina pública. Ela é parte da conciliação.
Escrevi semanas atrás sobre a eficácia do que chamei de “estratégia maricas”, atitude de conciliação política que tem criado pontes entre sociedade política e sociedade civil, cooperação administrativa entre governos subnacionais adversários, alianças eleitorais entre partidos de campos ideológicos distintos. Claro que nada disso afasta os perigos inerentes ao fato de haver um extremista no topo, mas tem mantido o país com alguma governabilidade e o governo com um mínimo de atividade, apesar do ânimo destrutivo a paralisante do capitão. A trancos e barrancos, a vacinação começará na próxima semana, na seguinte ou no final do mês. Supunha-se isso em dezembro? O horizonte, há um mês, era as calendas e o governo ainda escolhia que vacinas deviam ou não ser aceitas. Isso mudou porque a pressão contínua funciona. A conciliação é atitude e também resultado. Não evita a tragédia, mas que tamanho teria com o adendo de uma conflagração política aberta por um impeachment? A batata de Bolsonaro está assando, mas só lhe deve ser servida se e quando ele não mais puder ser vencedor e se houver evidências claras de que não se trocará um autocrata desgastado por outro, seu vice, que chegue com gás, achando-se digno de crédito de confiança e de carta branca para nos salvar, em razão de uma farda que um dia usou. As contas serão acertadas com Bolsonaro quando for menor o risco de sermos infectados pelo vírus e devorados por ele e/ou por seus áulicos. Somos reféns? Sim. Essa é uma fatalidade para além da pandemia? Temos motivos para pensar que não.
Comecei este texto com a arte de Gilberto Gil, refinada e popular, como a política precisa ser, sem se reduzir ou retroagir ao elitismo e ao populismo. Terminarei oferecendo, à ansiedade nobre de quem se vê em dificuldade para suportar Bolsonaro, o pensamento não menos nobre de Joaquim Nabuco, que assegura e anima, com a mesma nobreza da arte de Gil: Há duas espécies de movimento em política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto esse é, talvez, o único que não é uma pura agitação (Joaquim Nabuco – Minha Formação).
*Cientista político e professor da UFBa.