Circulando no Brasil, há meses, provocando comentários elogiosos e indisposições, o livro de Mark Lilla, “O progressista de ontem e o do amanhã”, que agora li, animou-me a tocar em temas não habituais para mim. O argumento liberal (mas não tanto), norte-americano (mas não só), pegou-me pela veia, como discurso crítico vigoroso da onda identitária que, segundo Lilla, teria capturado, há décadas, as mentes da esquerda liberal do seu país e feito o Partido Democrata capitular, face ao desafio de falar à nação.
Textos de Antônio Risério já vinham me ajudando a entender o viés político-cultural da argamassa identitária que tem murado – há menos tempo, mas também não de hoje – parte relevante da esquerda brasileira. O livro de Lilla sugeriu-me uma analogia, que arrisco, mesmo ponderando a razão de quem me alerta para uma distinção: identitários brasileiros não refletem tanto o individualismo “pseudopolítico” que Lilla vê nos movimentos que pautam seus correligionários. O sotaque “anti”, “pós”, ou “de”colonial, que movimentos brasileiros sustentam – mesclado, em curioso mix, com retóricas marxistas e perspectivas comunitaristas, religiosas e não – faz com que a sua ancoragem político-partidária dê-se em (ou em torno de) partidos e parlamentares da esquerda iliberal, acentuando, nessa última, o seu pendor histórico a ser uma esquerda “negativa”.
Além dessa discussão, é interessante, no livro, a visão reiterada de Trump como início de nada, exacerbação degenerada do ocaso da era Reagan. Interessante, também, essa visão não levar o autor a um otimismo partidarista, que poderia parecer pragmático, mas seria politicamente tolo. O seu raciocínio é outro: se o liberalismo norte americano está enredado na política identitária, logo, desarma-se, politicamente, para ocupar o vácuo que se apresenta. E mais interessante ainda é onde Lilla resgata cartas de navegação para sair em busca de um discurso liberal “progressista”, capaz, em tese, de fazer o PD voltar a falar ao grande público. É no repertório de métodos e valores de um conservadorismo político que em nada se confunde com a onda reacionária mundial, da qual Trump é a expressão mais notória e Bolsonaro, um arremedo tropical.
Conservadorismo do bem, em primeiro lugar, porque o valor mais acenado no livro é o de uma solidariedade associada à ideia de bem comum. Lilla reivindica, com razão, essa ideia como parte do patrimônio do liberalismo democrático. Mas quando, no contexto da sua crítica à política identitária, ele propõe alterar a agenda dos democratas para não deixar, na mão da direita, a bandeira do sentimento nacional americano, o bem comum surge como obra de uma cidadania política vivida através de instituições do Estado, não de movimentos sociais. Desse modo, o valor da solidariedade tem tradução diretamente política, como antídoto para um déficit que é mais de república do que de democracia. Nesse ponto pode-se chegar, também, a uma analogia com o contexto brasileiro.
Em segundo lugar, conservadorismo moderado, pelo método político. A distinção, até mesmo oposição, entre um espírito político conservador e a anti política, populista e reacionária, que se expande hoje, é um nó a desatar, para que o pensamento democrático saia do aperto em que se encontra. Lilla ajuda a desatá-lo, saltando por cima da dicotomia entre “nova” e “velha” política. Propõe prioridade à política institucional (a “política dos políticos”) e a define como a mais autêntica política dos cidadãos. Contribui, assim, ao debate em que Marco Aurélio Nogueira tanto nos tem feito pensar.
Quanto mais começo a conhecer (estimulado por alunos, é bom assinalar) pensamento de gente conservadora como Russel Kirk, Oakeshott ou mesmo Roger Scruton, mais persuadido fico de que, em suas reflexões, há afinidades, no modo de pensar a política como processo, com a esquerda positiva, que Gildo Brandão tão brilhantemente interpretou e em cuja tradição me reconheço. Por vezes vieram-me à mente, ao ler algo daqueles conservadores, ou sobre eles, passagens de Armênio Guedes (“politizar a ideologia, em vez de ideologizar a política”) e coisas que escreveu Marco Antônio Tavares Coelho, à guisa de enquadramento imediatamente político de uma perspectiva programática. Isso para ficar só em dois desbravadores de nexos entre socialismo, democracia e política, antes de 64, no antigo PCB. Vejo o rastro metódico de Armênio em Luiz Sergio Henriques e, de outro modo, em Luiz Werneck Vianna. São intelectuais que se sofisticaram estudando Gramsci, sem se concluírem como “gramscistas”. Para justificar essa menção, feita sem licença prévia deles, lembro dos belos usos que fazem, respectivamente, das obras de Giuseppe Vacca e Aléxis de Tocqueville.
Mas, pelo que sei, em geral, os reformistas de matriz comunista nunca levamos essas afinidades muito a sério, a ponto de conferi-las. Já tensionados pela necessidade de avistar pontes com o campo reformista liberal para reelaborar “metas” (o que parece ser o caso, por exemplo, de alguns quadros históricos do PPS), deixamos de prestar atenção mais simpática a essa direita tradicional, quase virtual, não para pedir “filiação”, mas como possível diálogo para aperfeiçoar um método que esse reformismo encontrou e adotou nos seus enfrentamentos críticos com esquerdas negativas, em variados tempos e países. Esse método, assimilado e curtido na política, parece ter mais parentesco com o da tradição política conservadora do que com o modus operandi da política liberal.
A cogitação não sai da cabeça, por mais que seja óbvia – e ideologicamente inibidora – a oposição entre o conservadorismo político e o reformismo, esse que é, hoje, talvez, nossa razão se ser. Mas como fazer, nesse canto do mundo atual e nas circunstâncias do Brasil, acontecerem reformas, num sentido “progressista”, adjetivo que está no título do livro de Lilla? Vai e volta a ideia que ouvi, há mais de um ano, quase por acidente (ele talvez nem se lembre e aqui vai amistosa indiscrição), de Rubem Barboza Filho: devemos pensar em reconstruir, pela esquerda, a ideia de nação. Um tema conservador?
Parece-me impossível fazer isso, democraticamente, sem dormir com alguns dos que sempre vimos como aristocratas e, portanto, inimigos. Assim como será impossível, a pensadores conservadores brasileiros “do bem”, seguir, à risca, a cartilha anti reformista (embora receptiva a reformas sem ismos) de seus primos anglo saxões. No passado foi Nabuco quem melhor compreendeu isso e, no entanto, seu “reformismo conservador” permanece até hoje como uma espécie de elo perdido no pensamento político brasileiro.
Talvez Lilla tenha me impressionado tão bem precisamente por ser – como foi Nabuco, em outro tempo e lugar – um auto declarado liberal, ciente do valor que o método político conservador tem no embate que trava em seu próprio campo reformista. Talvez devamos, os reformistas mestiços de matriz comunista, fazer algo assim no nosso campo. E com isso, quem sabe, acharmos o elo perdido de uma boa tradição truncada.
A recepção positiva ao tipo de afinidade que Lilla explora, ao pensar, universalmente, sobre o seu país, pode ter, no mínimo, entre nós, o sentido político de propor uma saída de compromisso para evitar a aliança do conservadorismo político esclarecido brasileiro (se é que esse sujeito existe) com a impostura populista que venceu as últimas eleições.
Até certo ponto, é bom que hoje o DEM esteja lá, se puder prevenir (mais) desatinos. Mas haverá um ponto em que será desejável o seu desembarque, para se juntar à reconstrução, como fez o embrião do PFL ao deixar o ninho da ditadura, em 1984/85.
Há um vácuo de opções de diálogo desse tipo no Brasil atual, porque o centro e a centro direita liberais estão bloqueados pela tirania de um fundamentalismo econômico que não nos deixa esquecer o que Gramsci chamava de cosmopolitismo postiço. Também porque há algo de atávico no fato do PSDB não conversar bem com o MDB. O convívio no governo Temer (saudades daquele carnaval) foi a enésima demonstração disso. De outro lado, porque a esquerda não petista (incluindo a nossa franja, auto definida como reformista e democrática) está rouca e de mãos atadas, pelo êxito do fundamentalismo resistencial do petismo, em ambientes onde ela atua. Por fim, porque parece quimérica a ideia de que o PT possa se reabilitar, no sentido democrático e pluralista.
Isso tudo sinaliza que o resgate de uma política de compromisso talvez tenha que surgir de uma ligação direta entre direita e esquerda democráticas, sem a mediação, até aqui esperada, de um ex-centro político que é social democrata na fala, liberal na meta e doutrinário no método. Se tiver futuro, essa ligação evocará a imagem arendtiana da política como um milagre de “nascimento”, tornado possível pelos atos de prometer e perdoar. Virtualmente, começaria por um compromisso entre atores hoje invisíveis, sendo até provável que seja preciso criá-los. Mas sem novos instrumentos políticos já nascidos, que tipo de ação pode ter lugar, hoje? Antes de tudo, há os instrumentos da “velha” política real, que podem ser operados com disposição nova, como recentemente argumentou, por exemplo, Eduardo Jorge, num encontro pós eleitoral da Roda Democrática. Além disso, a ação do pensamento, como tem insistido Werneck Vianna.
* Cientista político e professor da UFba.