Imediatamente após o desfecho favorável à democracia e à estabilidade institucional que teve a crise, artificialmente criada pelo governo federal, em suas relações com as corporações militares, o ambiente político se desanuviou, ainda que sem permitir celebrações, em face da gravidade mantida de uma tragédia sanitária com fortes e variadas implicações sociais. Retornou com mais força a sensação (já presente em semanas anteriores ao episódio dos militares) de que ações simultâneas – mesmo que nem sempre bem articuladas – do Congresso, STF, governadores, prefeitos e lideranças políticas, além de significativas manifestações unitárias no plano da sociedade civil, estavam conseguindo afrouxar um pouco o nó que ata a política e a sociedade ao clima depressivo da pandemia.
A queda do ministro das Relações Exteriores foi fator de descompressão que desobstruiu caminhos para se seguir correndo atrás do prejuízo por ele causado à imagem do Brasil no exterior e às possibilidades de o país obter apoio para o combate à pandemia. No plano das ações internas, o fluxo da vacinação melhorou, conseguiu-se criar ambiente um pouco mais cooperativo entre setores do Executivo e o Legislativo, levando a comprometimento mínimo do novo ministro da Saúde com um discurso racional e responsável, ainda que omisso quanto a medidas de restrição a aglomerações e atividades econômicas, decretadas por governadores e prefeitos. Esse é, como sabemos, o principal ponto de tensão que Bolsonaro, em crescente processo de isolamento político e queda de popularidade, promove no ambiente político e social. O isolamento, aliás, acentuou-se, como deixaram evidente manifestos de políticos e empresários que já fizeram parte da sua base de apoio.
Nada disso eliminou, ou mesmo aliviou, a dura rotina mortífera da contaminação e do colapso sanitário. Mas em meio à espiral crescente de efeitos perversos que se verificava antes da queda do ministro Pazuello, reabriu-se, com a rotinização relativa e lenta da vacinação, alguma perspectiva de alívio futuro. O carro do desespero permanece lotado e em movimento, mas é sensato supor que em abril ele parou de descer ladeira na banguela, como ocorria desde o início desse ano. A realidade dos recordes diários de mortes registra o ocorrido; a de internações e leitos, um processo que, timidamente, desenha esperanças. Bolsonaro segue hostil a todo alívio, mas com decrescente poder de criar retrocessos reais.
O dia 8 de abril foi de protagonismo do STF. Uma ambígua quinta-feira que trouxe alento e novos sobressaltos a esse processo incerto de racionalização do drama. Alento quando, por significativa maioria, o plenário da corte revalidou a autonomia de governadores e prefeitos no campo de luta contra a pandemia, no qual o governo federal lhes move uma guerra paralela, sugando energias preciosas que fazem falta na batalha contra o vírus. Frustrou-se a tentativa canhestra de arrastar a esse campo o tema da liberdade religiosa. Foi uma decisão em sintonia com o momento nacional de valorização racional da vida.
Penso que o mesmo não se pode dizer da segunda decisão do dia, pela qual um ministro da corte obriga o Senado a instalar uma CPI para, a princípio, investigar a condução do governo federal no combate à pandemia. Aqui não se discute nem a constitucionalidade (legitimidade objetiva) da decisão, nem a justeza da aspiração de se apurar e punir responsáveis por algo que tem fortes indícios de conduta criminosa. A análise dos fatos não pode, contudo, ignorar efeitos que essa decisão já causa sobre a instável coordenação entre os poderes e sobre as buscas de contenção racional do conflito político. E não pode vislumbrar que repercussões concretas a CPI poderá ter sobre o imediatamente grave cenário sanitário. Em nome da objetividade, o analista deve converter esses dois pontos em perguntas. E o compromisso social que também lhe cabe deve considerar que a legitimidade subjetiva da decisão dependerá da resposta à primeira pergunta (retrocesso na coordenação dos poderes e na contenção do conflito político?) ser um não e/ou da resposta à segunda pergunta (diminuirá a escala da tragédia sanitária?) ser um sim.
As respostas que consigo encontrar são as inversas e dão lugar à seguinte interpretação: a intervenção judiciária, nesse caso, não atende ao maior interesse público do momento, que é salvar vidas. Para que esse interesse seja atendido, um requisito importante é haver o máximo possível de coordenação e cooperação entre os Poderes da República. Que sentido tem o Senado instalar um tribunal neste momento, como um Nuremberg em plena guerra?
Alega-se ainda que a instalação da CPI é um direito da minoria do Senado. Pois bem, esse direito não pode ser adiado em nome da saúde pública, como foi adiado, em nome da mesma causa, o direito de pessoas religiosas terem acesso aos seus templos? Penso que o STF acertou em cheio nesse último caso e se equivocou, no caso da CPI.
Os produtos que se espera de uma CPI séria são: levantamento de fatos pretéritos; verificação de possíveis e prováveis irregularidades e crimes; apuração de responsabilidades de entes públicos; denúncia ao Ministério Público de pessoas investidas na condição de agentes. Tudo isso pode ocorrer daqui a meses e será bom. Mas não salvará a vida de quem hoje agoniza sem atendimento hospitalar adequado. Por outro lado, pode suscitar um clima de conflagração política e institucional que ponha em risco mesmo os modestos avanços que se tem alcançado no combate à pandemia nas últimas semanas.
Meu argumento não deve ser confundido com previsão de catástrofe. É de esperar que hábeis bombeiros consigam evitar que a CPI transcorra em ritmo de aventura. Se forem capazes de controlar a intensidade das labaredas, ela pode até ajudar a tornar mais evidente, para eleitores menos informados, os ardis do governo, aumentando seu desgaste e frustrando o desvio de objeto, que decerto tentará, para confundir alvos e atingir governadores, prefeitos e possíveis concorrentes em 2022, como o ex-ministro Mandetta. Se tudo correr dentro desses trilhos benignos, a CPI pode até pavimentar o terreno em que o presidente do Senado opera a sua política normalizadora. Que assim seja e que a política lenta conserve suas unhas no leme, para atravessarmos melhor esse nevoeiro até 2022. Mesmo no caso-limite de ineficácia do remédio político conservador, a CPI poderá pavimentar a via constitucional alternativa do impeachment. Dependerá não dela em si, mas de condições de temperatura e pressão da atmosfera sociopolítica do pós-pandemia.
Politicamente falando (pois para a saúde pública qualquer repercussão será a longo prazo) a CPI é janela de oportunidade para governo e oposição, creio que um pouco mais para o governo e o presidente, que, antes desse fato, pareciam estar cada vez mais pressionados contra as cordas. A ver, mas não perderemos nada se ficarmos atentos ao que nos ensina a experiência do Brasil com CPIs. Nelas, o banco dos réus costuma ser lugar de vencidos, não de quem maneja o poder. Será uma proeza se essa CPI sentar o governo nesse lugar.
O efeito específico do fator Jair Bolsonaro sobre tudo isso também não pode ser previsto, mas, seja qual for, tende a ser relevante, para bem dele e mal do país, ou vice-versa. Como é da sua natureza, Bolsonaro já aproveita o sismo para plantar terremoto. Oposições contam menos com seus próprios méritos e mais com o voluntarismo pelo qual Bolsonaro, com suas próprias aventuras, desperdiça as seguidas chances de reabilitação que certos adversários também voluntaristas e fogosos lhe oferecem, vide o affair com Sergio Moro.
Uma reflexão se impõe para que a CPI seja vista – sem lentes de aumento, otimistas ou pessimistas – no quadro do contencioso político nacional, que lhe transcende em muito. Trata-se de se o capital político acumulado pelas oposições e pela sociedade já evita que atalhos como essa CPI alterem a rota principal que pode levar os brasileiros a superarem, em 2022, a escolha trágica de 2018. Mais um teste de maturidade democrática nos desafia.
Há razões para supor que sim, pois uma consciência cívica voltada à resistência avança no Brasil desde as eleições de 2020 e tem sempre retornado à tona em patamar mais avançado após cada uma das várias escaramuças provocadas, nos últimos meses, por pescadores de águas turvas, especialidade na qual o presidente é doutor, mas não está só. Escolho não enumerar exemplos para não alongar o texto. Fico apenas naquilo que pesquisas sinalizam: que o presidente voltou a se isolar – como em março/abril de 2020 – porque se aparta, na companhia de suas milícias digitais e presenciais, de um amplo consenso básico da sociedade política, da burocracia da administração pública e da sociedade civil, sobre como lidar com a pandemia. O presidente conserva influência sobre sentimentos públicos de modo a incompatibilizar faixas da população com esses esforços e a rebaixar o nível de crença geral na democracia. Aí está o nó político a desatar. É preciso dedicar tempo a analisar senões que, no campo das oposições, ainda limitam as chances de o relativo consenso cívico que se formou ter dinâmica de convergência política irreversível. Tratarei disso no próximo sábado, se novos sismos não mudarem a pauta.
*Cientista político e professor da UFBa