Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Tornou-se lugar comum em análises políticas prospectivas voltadas às eleições de 2022 vaticinar que o chamado centro democrático até aqui não emplacou e que não emplacará. Temos aí uma constatação irrefutável e uma previsão afoita. Um uso de flash fotográfico para tratar de processo que requer filmadora.
Os raciocínios decorrentes dessa ilusória percepção do processo político como algo linear, no qual o presente é criado e explicado pelo antecedente e, ao mesmo tempo, cria e explica o sucedente são: primeiro, que Bolsonaro seria resultado direto e lógico da rejeição ao PT, logo, a rejeição foi o erro do qual resulta a tragédia social e política que o Brasil vive hoje; segundo, que a situação atual, indicada em pesquisas, de inconteste liderança de Lula comprova que esse é o caminho para derrotar o mal. A remissão de um suposto pecado, supostamente original, seria condição para que o país volte a ter futuro.
Acontece que a banda não tocou, não toca, nem tocará assim. Comecemos por relembrar: a eleição de Bolsonaro não foi desfecho natural e obrigatório da rejeição ao PT. Assim como a pedalada fiscal foi o argumento jurídico, a rejeição do eleitorado, sentindo-se logrado pelo marketing da campanha de 2014, foi o lastro social do impedimento de Dilma Rousseff, que passara a ser objetivo político de várias forças que a apoiaram naquela eleição, com destaque ao MDB e ao Centrão. Mas o que ocorreu depois (o esgarçamento e não a unidade eleitoral das forças que sustentaram o impeachment e a instalação de um governo de transição) não estava escrito nas estrelas. A Lava-Jato foi um solvente externo, cuja ação foi potencializada pela incapacidade política da nova coalizão governante de ir além do salve-se-quem-puder. Em vez de continuidade entre transição e nova situação (como entre Itamar e FHC, em 1993/94), deu Bolsonaro.
Hoje não há só duas bandas tocando, a do governo Bolsonaro e a da oposição de esquerda. Assim querem e fazem pensar as análises que vaticinam o caráter irremovível dessa polarização. Família e milícias de Bolsonaro, seu entorno militar e áreas do chamado centrão constituem três camadas de um bolo solado. Desse arranjo pode sair (e tem saído) muita coisa em comum, desde tentativas de saques devastadores aos cofres da União, até tolerância para com ameaças à democracia e às eleições, passando por devastação ambiental, educacional, cultural e informacional, por metódica desconstrução institucional do Estado, seu aparelhamento e a sabotagem, pontual e difusa, de direitos constitucionais, inclusive supressão do direito à vida de centenas de milhares de brasileiros. Em suma, pode sair tudo, menos uma coalizão capaz de vencer eleições normais, em dois turnos. Políticos profissionais sabem disso e não ficam à espera do abraço de afogado do capitão.
Isso quer dizer que as bases ainda ligadas ao governo, ou não rompidas com ele, rumarão para a oposição? Seria mais provável dois e dois somarem cinco. Abrir mão da máquina eleitoral federal quando se pode contar com ela é algo que contraria o beabá eleitoral de candidatos ao Parlamento e a governos estaduais, exceto aqueles que estejam previamente excluídos do acesso a ela, pela sua condição de oposição aberta. A recusa ao abraço de afogado quer dizer é que a direita e a centro-direita buscam outro candidato para derrotar Lula. Atuam e tendem a cada vez mais atuar num registro que rejeita o discurso e os métodos autocráticos do presidente. O eixo estruturante, criador dessa possível candidatura, seria o próprio governo e não uma aliança mais ao centro, de oposição. O centro iria, supostamente, por gravidade, parte dele logo, outra parte, no segundo turno. O nome? Não sabemos (é possível que nem mesmo os artífices dessa solução já saibam) mas entre Rodrigo Pacheco e Hamilton Mourão não se deve descartar nada.
A solução que surja desse eixo pode ter maior ou menor teor democrático. É bom não nivelar o juízo sobre cada uma dessas possibilidades, porque não é desprezível a distinção entre gravata e farda num momento tão delicado como esse pelo qual passa a nossa democracia. Seja como for, não é sensato apostar que o establishment ficará inerte, paralisado pela pluralidade de visões, valores e interesses que abriga. Se essas forças da direita não-bolsonarista (governistas e independentes) se entenderem sobre o nome e se conseguirem se acertar com Artur Lira – um ator com poder de veto – vão tirar Bolsonaro do caminho, por bem ou por mal. Isso se o Judiciário não consumar o fato antes, ou se o próprio Bolsonaro não entornar o caldo preferindo, em vez do script de eleitoralmente derrotado (ainda que inconformado), cumprir o de insurreto, ou o de vítima batendo em retirada. Penso ser assim que se deva ver, por exemplo, a operação de remontagem do DEM no Rio de Janeiro. Além de deslocar Rodrigo Maia no plano estadual, retaliando sua transição barulhenta e agressiva em busca de lugar na oposição frontal ao governo federal, ganhar aliados de Bolsonaro para a via governista sem ele, desbolsonarização do governo.
Visto que as bandas não tocaram antes, assim como não tocam hoje, do jeito simples insinuado por análises que usam flashes no lugar de filmadoras, resta argumentar como é possível que toquem em 2022 de modo menos óbvio do que aquele que coros equivocados e/ou interessados anunciam. Se, de fato, o chamado centro democrático for politicamente anulado em 2022, conforme os sinais mais visíveis apontam, não será pela imperiosidade da polarização entre Lula e Bolsonaro, mas pela perda da chance de ocupar a posição de eixo articulador de uma suposta terceira via, A primeira via (governista) adianta-se a esse centro como eixo articulador de uma alternativa liberal-conservadora ao bolsonarismo.
O sinal mais evidente dessa ultrapassagem é o posicionamento crescente do DEM na direção dessa primeira via sem Bolsonaro. Embora menos evidente, a conduta do MDB tende a ser parecida, ou ainda mais problemática, pelas inclinações lulistas que ali existem. Sem o DEM e o MDB, o centro democrático não poderá ser centro, no sentido de eixo. Estará condenado a ser coadjuvante, por mais que o PSDB seja um partido relevante. E as últimas votações no Congresso não devem iludir. Também no terreno tucano a força do governismo se mostra. Do mesmo modo que não se pode confundir isso com bolsonarismo, também não se pode negar a propensão de parte do partido a desistir da hipótese da terceira via.
É uma situação irreversível? Penso que não, enquanto existirem, simultaneamente, em mais de um terço do eleitorado (noves fora adesões e rejeições a Bolsonaro e a Lula), percepções de que o governo que aí está não presta e de que a volta do PT seria um desastre, ambas as percepções orientadas pela aversão à corrupção, à ineficácia econômica e/ou à instabilidade política. Se a direita conseguir, afastando ou eclipsando Bolsonaro, convencer que o governo passou a ser outro; ou se Lula conseguir convencer esse mais de um terço de que um novo governo seu será algo diferente do que foi, o centro democrático tende a ter um papel apenas coadjuvante, mesmo que importante para moderar e qualificar o debate. Se a direita e a esquerda lograrem, ambas, esses tentos, aí sim, o centro, por inutilidade, virará poeira.
Mas é muito cedo para vaticínios. A direita patina pela ausência de nome. Nela, esse limite é maior do que no chamado centro. Pode acenar com estabilidade, mas tendo o centrão como seu eixo, como contornar os receios do eleitorado com a corrupção e a incompetência do governo? Para estimular esses receios estão aí as ativas e experimentadas redes petistas. Por seu turno, Lula até aqui faz exatamente o oposto do que buscar a reversão da aversão àquele modo petista de governar. Tem prometido um retorno ao passado, que vê como um ativo político para apostar e não como algo a problematizar. Parece convencido de sua capacidade de convencer as pessoas de que, administrativa e politicamente, ele e Dilma são como trigo e joio. A direita não dispensará uma bola assim na marca do pênalti. Além de lembrar, com ênfase simétrica, da corrupção e da incompetência alheia, ainda acenará com riscos de golpe, se o PT retornar. Mantidas tais circunstâncias problemáticas, por que o projeto de uma candidatura mais ao centro deveria ser suicidado de véspera?
O maior problema do chamado centro democrático tem sido, desde 2015, ele mesmo. Pagou um alto preço eleitoral pela sua pusilanimidade durante o governo Temer. E arrisca-se a pagar outro em 2022 se não conseguir criar uma identidade e uma rota de navegação distinta não apenas da oposição de esquerda, mas também do governismo maquiado. Esses cacoetes permanecem nos partidos, mas é visível o esforço interessado que alguns pré-candidatos têm feito para superá-los. Enfrentam obstáculos para se tornarem agregadores em seus partidos, seja pela divisão (casos de João Dória e Eduardo Leite, no PSDB), seja pela força interna de um governismo difuso (caso de Luís Mandetta, no DEM). Quando, a princípio, não tem esse problema (caso de Ciro Gomes, no PDT), há problemas de afinidade política e de perspectiva econômica com os possíveis parceiros. Apesar de todos esses fatores reais, a coisa tem andado no sentido do amadurecimento de uma convivência cooperativa, simultaneamente a uma explicitação e discussão de diferenças entre eles. Se chegarão a tempo não se sabe, mas não há nada de melhor a fazer. Bom exemplo foi o segundo debate público entre três deles (Ciro, Mandetta e Leite) , ocorrido na última quinta-feira, dia 12/08. Apesar do formato engessado, foi possível aprofundar certos assuntos e ir lapidando um discurso comum, que pode se tornar amplo.
O critério para avaliar amplitude, no caso desse campo do centro, é distinto do que precisa ser adotado para avaliar a amplitude da conduta de Lula. Não se pode dizer que a postura pouco aberta a revisões que ele tem adotado é, necessariamente, sinal de que se preocupa só com seu “cercadinho” e que está fechado a uma inflexão futura. Se for fustigado pela emergência de uma candidatura agregadora do centro pode mudar essa postura. A atual tem sua racionalidade, pois Lula joga para apressar a consumação de um quadro em que ele seja a única opção de oposição ao “que aí está”. Esse é um jogo compreensível. Quem quer coisa diferente tem de apresentar. Ainda há tempo, mas está passando rápido. Tudo indica que Lula e o PT não vão conseguir que a eleição se resuma a um plebiscito contra Bolsonaro, o cardápio dos seus sonhos. Provável que comam mais poeira enfrentando outro candidato, um sujeito oculto que mais dia, menos dia, vai aparecer. Arma-se no país um cenário de polarização entre Lula e outra candidatura governista.
Uma alternativa democrática a esse tipo de polarização seria uma candidatura de oposição ou independente que, mesmo vindo da centro-direita, pudesse agregar o centro e até morder áreas da esquerda, programática e eleitoralmente. É para esse tipo de solução que o tempo está ficando cada dia mais escasso. Ao contrário da hipótese de uma candidatura governista alternativa a Bolsonaro, que tem a seu favor o desespero generalizado para se livrar de Bolsonaro, que com o tempo condicionará mais o establishment. A ponto de não fazer diferença, para quem precisa dessa arca, se o comandante usará farda ou paletó.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-as-chances-de.html