Que o mundo contemporâneo se caracteriza cada vez mais pela velocidade com que a realidade muda é algo palpável para toda e qualquer pessoa, não importa o país ou a região que habite. Este ritmo acelerado de mudanças atinge todas as instâncias da sociedade, e é, em larga medida, impulsionado pela economia, onde a velocidade se manifesta de forma mais clara, com consequências importantes para a política.
Alguém poderia argumentar, contudo, que não há nada de intrinsecamente novo na dinâmica do mundo moderno, e que mudanças são uma constante desde o surgimento do homo sapiens e suas civilizações. Já no século V a.C., por exemplo, filósofos pré-socráticos assinalaram a mutabilidade do mundo. O caso mais notório é o de Heráclito de Éfeso, cujo conhecido fragmento – “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio: suas águas não são nunca as mesmas e nós não somos nunca os mesmos” – parece atestar que não era indiferente, para os antigos, a ideia de que o mundo estava em constante mutação.
O pensamento de Heráclito, no entanto, se refere ao sempiterno ciclo da natureza, onde tudo se encontra em contínuo movimento. Nas sociedades, ao contrário, mudanças são causadas pela mão humana, sendo que a característica do mundo moderno, especialmente na atual era digital, não é tanto a mutabilidade em si, mas seu ritmo alucinante, sem precedentes na história.
Como o historiador israelense Yuval Noah Harari ilustrou muito bem em seu livro Sapiens: “Se, por exemplo, um camponês espanhol tivesse adormecido no ano 1000 e despertado 500 anos depois, ao som dos marinheiros de Colombo a bordo das caravelas Niña, Pinta e Santa Maria, o mundo lhe pareceria bastante familiar. Apesar das muitas mudanças na tecnologia, nos costumes e nas fronteiras políticas, esse viajante da Idade Média teria se sentido em casa. Mas se um dos marinheiros de Colombo tivesse caído em letargia similar e despertado ao toque de um iPhone do século XXI, ele se encontraria em um mundo estranho, para além de sua compreensão”.
Na realidade, esta velocidade que o mundo moderno experimenta não passou despercebida por diversos pensadores ainda na aurora da revolução industrial e do desenvolvimento capitalista, seja para criticá-la ou enaltecê-la. “Tudo que é sólido desmancha no ar” talvez seja uma das mais famosas frases do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, que veio à luz em 1848. Assinalando que “a burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção”, os autores constatam ainda a “contínua perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação” que este processo estaria gerando. E define a moderna sociedade burguesa como um “feiticeiro incapaz de controlar os poderes ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas”.
Por volta de um século mais tarde, o influente economista austríaco Joseph Schumpeter também se refere, em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia, ao dinamismo da economia capitalista, que se manifestava no que ele denominou de “destruição criativa” – a inovação constante que o empresário é forçado a buscar para expandir seus negócios e gerar mais lucros, em um movimento que tornava obsoleto e inútil os produtos e os modos de produção que existiam anteriormente. Para Schumpeter, portanto, um capitalismo que fosse estático seria uma contradição em termos, já que para ele o sistema econômico exige contínua destruição e renovação, criando riqueza e novos negócios, ainda que nesse processo cause a ruína daquelas empresas que não souberam inovar.
Mais recentemente, vários sociólogos também constataram a peculiaridade do ritmo veloz da era moderna, analisando suas consequências para além da economia. É o caso do polonês Zigmunt Bauman, que caracterizou as sociedades modernas como “líquidas”, no sentido de que nelas tudo é fluido e passageiro. As constantes inovações tecnológicas, as mudanças súbitas nos valores e na economia acarretam, segundo Bauman, uma sensação generalizada de insegurança, com consequências que se estendem até ao relacionamento entre as pessoas e suas identidades. Já o sociólogo alemão Ulrich Beck vê a perda de controle sobre a aplicação rápida e massiva de novas tecnologias e a destruição do meio-ambiente como algumas das características das sociedades modernas, que ele denominou de “sociedades de risco”.
Outra corrente contemporânea de pensamento, o chamado “aceleracionismo”, também dedica-se a estudar o caráter dinâmico do capitalismo dos séculos XX e XXI. Inspirado em obras de ficção científica, e na filosofia de Deleuze e Guattari, o aceleracionismo desenvolveu-se de forma bastante eclética, mas tendo como ponto comum o diagnóstico de que, sendo impossível eliminar a dinâmica capitalista, trata-se então de acelerá-la ao máximo, seja para otimizar o processo produtivo e a inteligência humana – em uma versão tecnomaterialista -, seja para alcançar uma socialização mais coletiva que libere o ser humano, em uma versão aceleracionista mais à esquerda.
Os diversos autores e correntes de pensamento aqui sintetizados são apenas alguns exemplos de uma miríade de constatações sobre a formação do que poderíamos chamar de “economia da velocidade”. Com a revolução técnico-científica, a partir da segunda metade do século XX, e o advento da era digital, logo em seguida, eventos estes que envolveram diversas áreas do conhecimento como informática, robótica, telecomunicação, biotecnologia e engenharia genética, todas incentivadas e subsidiadas por grandes corporações, o mundo sofreu alterações ainda mais gigantescas. Estas alterações constituem o que o alemão Klaus Schwab, diretor do Fórum Econômico Mundial, denominou de “Quarta Revolução Industrial”, e que foram acompanhadas pelo desenvolvimento da nanotecnologia, da inteligência artificial e da “internet das coisas”. Estes saberes e instrumentos, aplicados à prática e levados a todas as regiões do planeta pela globalização, constituem uma revolução não só na produção, comércio e serviços, mas também nos valores e comportamento humanos.
A economia da velocidade tem ideologia própria: o desenvolvimento sem limites, atualmente defendido ferrenhamente pelos neoliberais, e presente também no marxismo sob a forma de “desenvolvimento das forças produtivas”. Mas desenvolvimento ou crescimento de que e para quê? Esta questão nunca é explicitada a fundo nas modernas democracias liberais, e no turbilhão da vida cotidiana, nem mesmo é levantada. Desenvolver, contudo, significa expandir e aprofundar algo que “já está ali” in statu nascendi. E o que “já está ali”, na origem da economia da velocidade, é a cultura do consumo, que o crescimento econômico tem que suprir em escalas cada vez maiores e mais rápidas.
O impacto da economia da velocidade na política é enorme e abarca diferentes dimensões. Uma de suas primeiras vítimas é o Estado-nação, cujas fronteiras tradicionalmente serviam para delimitar a cultura, a ordem política e as leis de uma comunidade, garantindo sua segurança e soberania. Nesta era de globalização, que na realidade nada mais é que a expansão mundial da economia da velocidade, o Estado-nação se vê invadido implacavelmente por atividades econômicas e financeiras internacionais, perdendo a capacidade de administrar seu território e elaborar políticas econômicas e sociais com alguma autonomia.
Poder-se-ia esperar que aqueles que se opõem ao status quo – as forças de esquerda, liberais humanistas, etc. – corressem em defesa do Estado-nação contra uma globalização que, tanto a organização global Oxfam como o Fórum Econômico Mundial de Davos reconhecem, não fez mais que acentuar as desigualdades sociais e reforçar a assimetria tecnológica e econômica entre países centrais e periféricos. Mas estas forças parecem sonhar com outro tipo de globalização, enquanto a defesa do Estado-nação tornou-se monopólio da extrema-direita, que prega um nacionalismo xenofóbico contra imigrantes e minorias étnicas e religiosas.
No plano doméstico de cada país, instituições políticas, organizações e agências estatais sofrem diretamente com a velocidade do mundo moderno. Este é o caso do legislativo nas democracias modernas, que não consegue acompanhar o ritmo da sociedade. Corporações, bancos, movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos apresentam reivindicações e exigem a aprovação de leis que o legislativo, com seu burocrático processo decisório, não consegue atender com a rapidez desejada.
É certo que este é um problema quase tão antigo como a humanidade. Basta lembrar que Platão, ainda no século IV a.C., já apontava, no diálogo O Estadista, o descompasso entre as leis escritas e a dinâmica da realidade. E, em fins dos anos 50 do século passado, cientistas políticos da escola behaviorista, como David Easton, assinalaram que os sistemas políticos modernos entram em desequilíbrio quando as crescentes demandas ou inputs vindos da sociedade não recebem o número adequado de outputs ou respostas de parte do sistema político. No acelerado século XXI, contudo, este gap entre demandas e legislação se tornou ainda mais acentuado.
É preciso assinalar, por outro lado, que o Estado viu-se obrigado, historicamente, a multiplicar suas funções para atender à crescente complexidade da economia e à competição cada vez mais desenfreada das empresas no mercado interno e internacional, criando uma infinidade de órgãos de fiscalização, serviços sociais, agências reguladoras, etc. É certo que esta imensa burocracia acabou por comprometer a eficiência da administração, além de gerar crescentes déficits fiscais. Mas os filisteus neoliberais que colocam a culpa de todos os males do mundo no Estado esquecem que boa parte dos problemas deste tem origem justamente no tipo de economia e sociedade que defendem.
Além de enfraquecer o poder do Estado e suas instituições, a economia da velocidade afeta também o mercado de trabalho. Inovações ligadas à biotecnologia, informática, inteligência artificial, automação e disseminação do uso de algoritmos têm eliminado um número imenso de profissões, substituindo trabalhadores tanto em atividades físicas como cognitivas. Na realidade, o crescimento econômico já não expande o mercado de trabalho significativamente, e os postos criados são aproveitados apenas por aqueles poucos trabalhadores capazes de acompanhar as novas exigências das profissões especializadas.
Nesta situação, a grande maioria dos trabalhadores desempregados é obrigada a sobreviver de seguro social, ou tornam-se terceirizados, autônomos ou informais, com pouco ou nenhum direito trabalhista. As desigualdades sociais e a precariedade do trabalho aumentam, surgindo uma situação potencialmente explosiva que pode gerar distúrbios sociais e instabilidade política.
Além disso, na economia da velocidade, informação é tudo. A disputa desenfreada por fatias de mercado e consumidores faz com que empresas desenvolvam imensos arquivos de Big Data, através da tecnologia da informação e algoritmos, capazes de armazenar dados sobre as opções de consumo de populações inteiras. Pior ainda, sistemas biométricos que permitem o monitoramento do comportamento humano estão sendo desenvolvidos por governos e empresas, reforçando um tipo de sociedade tendencialmente totalitária, como a descrita por George Orwell, em 1984.
Todas estas facetas do mundo moderno – economia veloz fomentando um consumo desenfreado, esgotamento dos recursos naturais e colapso do meio-ambiente, enfraquecimento do Estado e suas instituições, difusão de tecnologias que restringem o mercado de trabalho, advento de uma sociedade de vigilância – variam evidentemente de acordo com a história, a economia, a cultura e a situação política de cada país. Mas não deixam de tornar sombrias quaisquer previsões a respeito do futuro da humanidade, e levantam a questão sobre qual seria a melhor política para combatê-las.
Em um primeiro momento, poderia parecer que, se os problemas gerados pela economia da velocidade advêm da estrutura econômica e da arraigada cultura de consumo da contemporaneidade, somente uma mudança radical, uma verdadeira revolução política, poderia colocar as sociedades sobre novos trilhos. Extremistas míopes e radicais de salão compartilham dessa visão, achando que é possível organizar uma resistência popular voltada para a derrubada de tal sistema, quando chegar o inevitável momento da crise econômica e instabilidade social.
O problema com essa estratégia é que, mesmo que ocorra uma situação de ruptura política, o novo governo que subir ao poder se confrontará com a mesma estrutura anterior que forma a base da economia da velocidade e sua cultura de consumo que, por sua vez, já faz parte do modo de vida da população e é por esta legitimada. Nesses casos, abre-se um abismo intransponível entre a nova elite dirigente e a população. Este foi o caso da revolução russa e de outros movimentos revolucionários que fracassaram em construir um novo modelo de sociedade.
Outra estratégia, de longa tradição na política, defendida por forças de centro-esquerda, é a de introduzir reformas paulatinas no sistema político, social e econômico, em um contexto de aprofundamento da democracia, de forma que essas mudanças sejam acompanhadas de uma conscientização da população sobre a necessidade de um novo modelo de sociedade, mais igualitário e solidário. Esta política foi levada a cabo pela socialdemocracia europeia, que obteve êxito em construir um “Estado de bem-estar social” na Europa, principalmente nos países escandinavos.
Ainda assim, seu êxito foi limitado. A acusação algo simplista que os comunistas dirigiam à socialdemocracia – que esta não fazia mais que “administrar o capitalismo”, acabou, ironicamente, revelando-se verdadeira, pois o ethos consumista nunca foi seriamente combatido pelos governos socialdemocratas, e a expansão do mercado acabou por desequilibrar a relação entre desenvolvimento e bem-estar, enfraquecendo os sindicatos e fortalecendo a mentalidade consumista.
A socialdemocracia foi também perdendo sua identidade política na medida em que enfrentou as sucessivas ondas neoconservadoras e neoliberais que surgiram desde os anos 80 do século passado com um discurso adaptado ao ideário liberal. Essa mudança na visão da socialdemocracia recebeu tratamento programático e teórico na ideia de “terceira via” do Partido Trabalhista britânico sob a liderança do então primeiro-ministro Tony Blair (1997-2007). Desde então, o Estado de bem-estar social vem sendo desmontado por políticas de ajuste fiscal e cortes orçamentários, comprometendo o nível de vida dos trabalhadores.
Para a centro-esquerda dos países periféricos, a questão da exclusão social é especialmente grave. O aprofundamento da democracia, nesses casos, tem como objetivo principal a inclusão social, e não poderia ser diferente. Alguns obstáculos, contudo, aparecem no caminho dessa estratégia. Operar reformas em contexto democrático exige apoio popular e respaldo político. Daí a tendência da centro-esquerda de formar amplas alianças com forças políticas muito diversas, de forma a garantir um apoio mais consistente tanto na sociedade como no governo. Tal política de alianças, por sua vez, sempre exige distribuição de poder entre aliados pouco ou nada comprometidos com mudanças políticas e sociais, o que acaba enfraquecendo o projeto de reformas, além de gerar constantes crises políticas.
Outro problema diz respeito ao aprofundamento do sistema democrático enquanto tal. Uma radicalização da democracia, que incorpore as camadas sociais excluídas, certamente irá reforçar a cultura do consumo e o sistema da economia da velocidade. Os excluídos, naturalmente, vão querer se atirar aos produtos e às bugigangas eletrônicas que simbolizam a aquisição de status social. Não vão ouvir apelos ao “desenvolvimento sustentável” nem sermões de teóricos do “decrescimento” sobre a necessidade de conter o consumo. E quem poderia condená-los, se este é o comportamento das elites que lhes servem de modelo e a realidade da cultura dominante da sociedade?
Pode ser que o teórico marxista Frederic Jameson estivesse certo quando disse que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Mas pesando os prós e contras, a estratégia de reformas é mais sensata e promissora que o “assalto aos céus” preconizado pelos extremistas. É difícil, no contexto das atuais democracias modernas, imaginar outra política de mudanças que não esteja baseada em uma estratégia reformista. Mas analisando a experiência nesse sentido, é preciso enfrentar o que parece ser um dos seus grandes desafios: como promover reformas que não se percam no emaranhado de alianças políticas, e que, ao amenizarem as consequências da economia da velocidade, não mantenham, paradoxalmente, o sistema que a sustenta.
*Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)