Ao confundir o divergente com o abominável, polarização política promove a intolerância.
Nos bastidores das batalhas ideológicas, há uma disputa velada sobre onde demarcar os limites do politicamente aceitável.
Enquanto certos conservadores tentam enquadrar adversários e dissidentes em uma visão ampliada e delirante do comunismo, alguns ativistas de esquerda tentam subsumir seus adversários em uma visão ampliada e distorcida do fascismo.
Em ambos os casos há um movimento duplo de ampliar o escopo e estigmatizar o adversário. O fascista não seria apenas o apologista da tortura e da ditadura, mas também aquele que defende as privatizações, se opõe às cotas raciais ou apoia a Lava Jato; o comunista não seria o apoiador de regimes totalitários, na Coreia do Norte ou na Venezuela, mas também aquele que defende o devido processo legal, apoia a universidade pública ou quer a ampliação das políticas sociais.
O primeiro, abominável, subsome o que vem depois, torna-se a sua verdade. O fascismo vira a verdade oculta das privatizações, e o comunismo, a verdade oculta da universidade pública.
Num efeito paradoxal, a amedrontadora emergência desses inimigos execráveis autoriza as alianças mais espúrias. O movimento relacional e combinado, que acontece à esquerda e à direita, funciona como uma profecia autorrealizada, na qual apologistas da ditadura se fortalecem antagonizando com comunistas fantasiosos, e defensores de Stálin e Maduro se consolidam combatendo fascistas imaginados.
Um dos elementos constitutivos da polarização em curso é que nossa identidade política é essencialmente a negação daquela do adversário. Por isso, as distorções que o campo adversário faz do nosso campo nos define. Aos poucos vamos todos nos convertendo em monstros.
“Nós, stalinistas, odiados pelos fascistas, somos os verdadeiros antifascisistas.” “Nós, apoiadores da revolução de 1964, odiados pela esquerda, somos os verdadeiros anticomunistas.” Quanto mais nos identificamos com os monstros do inimigo, mais radicalmente antieles nos tornamos —e é a negação do abominável o que nos move.
Precisamos abandonar essa dinâmica de intolerância mútua que está destruindo nossa comunidade política, tornando cada dia mais próxima a iminência de uma guerra civil.
Em vez de equiparar liberais a fascistas, socialistas a totalitários, precisamos condenar os autoritários dos dois lados do espectro e reconhecer que, em uma democracia verdadeira, liberais e socialistas precisam ter voz. Não existe democracia sem convivência da esquerda com a direita.
Nosso desafio é criar acordo sobre os parâmetros democráticos e isolar os carniceiros que se alimentam da polarização.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.