Crise econômica é simbolizada por um botijão com custo de 10% do salário-mínimo e corrupção revelada pelo escândalo Covaxin
Raimundo Benoni Franco*
Imaginemos a seguinte situação no Brasil: homens armados (militares, policiais e milicianos) tomam as ruas, prendem opositores ao governo, suspendem as liberdades individuais, lacram o portão de vidro do Supremo Tribunal Federal (STF), e, nas células de WhatsApp, a maioria dos brasileiros discute como e por quais motivos a democracia brasileira morreu. Obviamente, essa possibilidade é até crível, mas há um emboço para chegar-se ao mesmo fim sem esse aparato, pois as democracias não morrem mais apenas a partir desses fenômenos extremos: elas padecem aos poucos, às vezes à míngua. Os ‘novos’ regimes autoritários estão sendo instaurados sem fuzis, prisões, guerras civis.
Se você leu o livro ‘Como as democracias morrem’, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (editora Zahar), entende as razões desta mudança de perfil nas estratégias e até nas táticas (aliás, se não o leu, faça-o já). Alguém comentou recentemente que vivemos um zeitgeist, o tal espírito que marca um tempo sociocultural no mundo ou em alguma região dele. É o que importa, segundo Karl Jaspers: ser de seu próprio tempo.
Pois bem: outubro é tempo de lembrar de jamais esquecermos de que pode até mudar a forma, mas que o melhor dos regimes continua sendo atacado, vilipendiado, boicotado. Por quê? Porque neste dia 25 festeja-se o Dia da Democracia – data escolhida por ser o dia da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. Judeu nascido na extinta Iugoslávia, rumou para o Brasil com familiares para fugir da perseguição comandada por nazistas alemães. Já naturalizado brasileiro, vinculou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou militante na luta pela democracia – e, como era jornalista, brigou pelo fim da censura adotada pelos militares.
O tempo de Herzog é o nosso – mesmo que não tenhamos mais censura oficial. Há pesquisas recentes mostrando insatisfação de boa parte da sociedade com a democracia – como ocorria há um tempinho de cinco ou seis décadas que nos levaram do convívio Herzog e outros tantos combatentes.
Some-se, então, à crise econômica simbolizada por um botijão custando 10% do salário-mínimo com corrupção (vide o escândalo Covaxin, no Ministério da Saúde) e a um falso discurso antissistêmico que a bomba está armada. E então, por dentro – eis aí a síntese da obra de Levitsky e Ziblatt: a democracia destruída por dentro com o surgimento de demagogos legitimamente eleitos e que, aproveitando-se da insatisfação popular, engrossam o discurso de combate à corrupção e de segurança nacional, mas trincam os verdadeiros pilares da democracia.
Manobram, enfim, as instituições e poderes (forças armadas, parlamento, judiciário) que juraram defender, em instrumentos para adotar autocracias. E sem dar um tiro ou valer-se do soldado e do cabo, como ocorreria em um clássico golpe de Estado. E, pior, convencendo um terço da população de que ainda o praticou com intenções nobres – no sentido figurado de altruísta e generoso.
Essa dialética usa premissas duvidosas e genéricas – como o combate ao globalismo, seja lá o que for isso. Ou a nada singela rejeição à ciência – como a que constata os efeitos comprovadamente nefastos das mudanças climáticas. Todo o processo, portanto, precisa de algum tempo. E se dá gradualmente, enfraquecendo e tornando ilegítimos alguns preceitos e ideias para depois salvá-los. O mais assustador, porém, é o deliberado ato de debilitar instituições como tribunais superiores e procuradorias a partir da seleção ideológica e até mesmo religiosa de seus integrantes.
A boa peleja, portanto, é aquela permanente. Mas vamos usar outubro por outros motivos, além do fato de ser o mês da democracia: ele é também o mês do vereador (o alicerce dela); da cidadania (que nos dá, nela, direitos); da promulgação da Constituinte de 1988 (que garantiu essa democracia que agora querem retirar); e do professor (que nos dá consciência para defender essa democracia).
*Engenheiro, com formação na área de energia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), vice-prefeito de Salinas (MG) e diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).