Otávio Santana do Rego Barros / O Globo
‘A deterioração de qualquer governo começa com a decadência dos princípios sobre os quais se fundou’, escreveu Montesquieu em “O espírito das leis”. Passados quase três séculos, mantém-se inabalável o axioma do filósofo francês.
Se a razão para insultar esses princípios é a falta de ética ou moral, institui-se a anarquia de valores no seio dos governantes, com consequências imprevisíveis para a sociedade tutelada.
Essa degradação é potencializada pela desmedida ambição de mandar dos condottieri de turno. A insensatez política, como reflexo, é filha bastarda da cobiça por poder.
No célebre tratado “A marcha da insensatez”, Barbara Tuchman sustentava que “ela (a ambição) somente pode estar satisfeita com o poder sendo exercido sobre os demais, e, portanto, o governo é seu campo de exercício favorito”.
Thomas Jefferson, mentor da declaração de independência dos Estados Unidos da América, professava opinião melancólica sobre o tema: “Sempre que um homem desejar o cargo, sua conduta começa a deteriorar-se”.
Há muitos desejando o cargo. Ou temendo perdê-lo. São burocratas que sonham com ganhos não meritórios, políticos interessados na escravidão dos currais eleitorais e até chefes de governo que objetivam, tão somente, a reeleição.
Nos coadjuvantes desse processo, a norma comportamental é agradar ao máximo e ofender o mínimo. Nos atores principais, é aniquilar os adversários, desembainhando adagas afiadas na influência da caneta.
É certo que a ascensão ao poder em ambientes democráticos se conforma pela escolha soberana dos cidadãos nas rondas eleitorais. Contudo muitos dos entronizados se ungem como oniscientes, onipresentes e onipotentes.
Sentados em confortável poltrona, encerram-se em outra dimensão, refutando quaisquer conselhos serenos. Para eles, reconhecer os erros, eliminar os prejuízos, alterar o curso são opções repugnantes, revela Tuchman.
Quando a escritora abordou o período Richard Nixon na Presidência americana, ilustrou como aspecto demeritório do poder a ausência da discordância leal com o chefe do governo. Seus auxiliares adotaram métodos ilegais para apagar pegadas incriminadoras das responsabilidades, levando-os ao desfecho impensado do Watergate. Uma lição aos autocratas de plantão. Mantenham-se abertos ao conflito saudável de ideias.
Um príncipe, defendeu Maquiavel, deve ser paciente perguntador e ter ouvidos atentos. Antes de refutar, deve aceitar que outros mais capazes formulem e até executem uma política em benefício do todo.
O Papa Alexandre VI assim se dirigiu a cardeais em um consistório: “O mais atroz dos perigos para qualquer papa está no fato de que, cercado, como vive, por lisonjeadores, jamais escuta verdades sobre sua pessoa e acaba por não querer mais escutá-las”.
Diante da crise institucional que teima em se instalar no país, conduzida, como visto, pela filha bastarda do poder, urge prescrever à sociedade o remédio da sensatez, reforçado com vitaminas da temperança e firmeza de propósito.
Em receita complementar, movermo-nos vigorosamente para abafar posturas desmedidas de agentes do poder que sugestionem um conflito aos menos avisados. Não há espaço para tergiversações, pois “a loucura nos poderosos não pode passar despercebida” (“Hamlet”, Shakespeare).
Um abismo se aprofunda à nossa frente. A erosão da racionalidade o alarga. A tessitura da estabilidade social precisará ser conduzida por um líder genuinamente inspirador. Que seja subalterno ao bem-servir. Que mais escute que imponha. Que seja manso e humilde, sem ser fraco e complacente, como professava o cardeal Angelo Roncalli (o Papa João XXIII). Basta de insensatos incorrigíveis.
Paz e bem!
* General de Divisão R1
FONTE: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/filha-bastarda-do-poder.html