A recomposição da autoridade do STF é essencial para a saúde da democracia
Vem de longe a desconfiança das elites políticas brasileiras na democracia liberal. Nossa primeira Constituição, outorgada por Pedro 1º, inspirada na restauração Francesa de Luís 18, conferiu ao imperador um papel de tutela sobre o sistema político. Além da função de chefia do Executivo, ao imperador caberia o exercício do Poder Moderador, que deveria incessantemente velar imparcialmente pela independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes (artigo 98, Constituição de 1824), o que jamais ocorreu.
Com a proclamação da República, a função moderadora, como propunha Rui Barbosa, deveria passar a ser exercida não mais por uma pessoa, mas pelo império do Direito. Ao garantir a supremacia da Constituição, o Supremo Tribunal Federal limitaria os poderes políticos, “contra os excessos do mandonismo em todas as suas violências ou trapaças”.
Como sabemos, o transplante do modelo constitucional norte-americano não triunfou. Para Raymundo Faoro, “a missão política que [o Supremo Tribunal Federal] deveria representar estava destinada a outras mãos, alimentadas de forças reais e não de papel”. Foram os militares e não o Supremo que, de fato, se ocuparam de dar a última palavra na solução de nossas crises políticas ao longo da República.
Alfred Stepan, emérito estudioso de nossos militares, aponta nada menos do que nove intervenções entre 1889 e 1964. Esse “intervencionismo patológico”, nas palavras de Stepan, indicam para a consolidação de um novo “padrão moderador”, pelo qual as elites civis, quando incapazes de resolver seus próprios conflitos no marco da institucionalidade constitucional, buscavam apoio de setores militares para desestabilizar adversários ou manter-se no poder. Foi assim em 1889, 1910, 1922, 1930, 1945, 1954, 1955, 1961 e, finalmente, 1964, quando os militares decidiram não mais se limitar a arbitrar disputas e se lançaram ao exercício do poder, sem intermediários.
Com a debacle do regime militar, marcado por uma forte crise econômica, hiperinflação, escândalos e descontrole na administração das estatais, além da mácula dos crimes contra a humanidade, o país se reconstitucionalizou. A eterna desconfiança entre as elites políticas levou, no entanto, à adoção de uma Constituição extensa e detalhista. Ao estamento jurídico e especialmente ao Supremo Tribunal Federal foram transferidos enormes poderes para zelar pela integridade da Constituição e pela estabilidade do regime.
A transferência da função moderadora dos militares para o Supremo, de fato, começou ainda no processo de transição, quando os ministros do tribunal foram chamados a decidir —informalmente— quem deveria tomar posse como Presidente da República, em face do impedimento de Tancredo Neves (“História Oral do Supremo”, FGV).
Nos últimos 30 anos o Supremo paulatinamente consolidou sua posição de guardião da Constituição, exercendo também, em diversas ocasiões, a função moderadora, como nos impeachments de Collor e Dilma.
Com o acirramento dos conflitos políticos, a partir de 2013, o Supremo foi tragado para o centro da crise. Sua fragmentação, conflitos internos e outras idiossincrasias têm contribuído para que as “vivandeiras alvoroçadas” se voltem novamente para os militares, para que reassumam a função moderadora. A recomposição da autoridade do Supremo é mais do que nunca essencial para a saúde de nossa democracia constitucional; só cabe aos próprios ministros restabelecê-la.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.