O sistema democrático norte-americano sobreviveu, em grande parte, graças à falta de disciplina de Trump. Um populista com ambições autoritárias, que aprendesse com os erros do magnata, representaria muito mais riscos no futuro
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Joe Biden venceu as eleições presidenciais americanas de 2020 porque soube transformar o pleito em um referendo sobre Donald Trump. Mesmo a poucas semanas das eleições, o candidato democrata era econômico em suas aparições públicas, dando a seu adversário a maior visibilidade possível. “Trump deve receber corda suficiente para se enforcar. Quanto mais ele fala, melhor para mim”, Biden apostou. Deu certo: acima de tudo devido a sua gestão desastrosa da pandemia, que ceifou a vida de um quarto de milhão de norte-americanos, Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA, desde 1992, a não se reeleger.
O clima festivo nas grandes cidades americanas depois da declaração do resultado final, na semana passada, foi diferente daquele de 2008, quando o jovem senador Barack Obama acabara de se tornar o primeiro presidente-eleito negro da história dos EUA. Doze anos mais tarde, não se celebrava a vitória de Joe Biden, mas o fim da presidência de Donald Trump e a ameaça autoritária que ela representava. “Parece que acabamos de completar um exorcismo”, o cientista político Francis Fukuyama resumiu.
Não há dúvida de que a derrota de Trump pode ser interpretada como prova de resiliência da democracia americana. Numerosas iniciativas do Republicano, ao longo dos últimos quatro anos, foram bloqueadas pela justiça, ele não conseguiu calar jornais ou intimidar acadêmicos e, em uma mensagem pouco sutil na semana passada, o general Mark Milley, oficial militar de mais elevada patente das Forças Armadas dos EUA, alertou: “Não fazemos juramento (…) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (…) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.” Vista dessa perspectiva, a principal diferença entre os Estados Unidos e países cuja democracia colapsou ao longo das últimas décadas ―como Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Rússia, Zimbabwe, Egito e Filipinas― seria a qualidade de suas instituições.
Porém, enquanto as instituições certamente tiveram papel relevante para explicar o fracasso do projeto autoritário do presidente Trump, há uma outra razão, possivelmente ainda mais importante: a democracia norte-americana sobreviveu, acima de tudo, graças à incompetência e à falta de disciplina do presidente, que muitas vezes atuou visando a pequenas vitórias táticas, em vez de planejar o longo processo de desmonte das estruturas democráticas, como fizeram outras lideranças autoritárias ao redor do mundo.
A pandemia talvez seja o melhor exemplo. Em vez de aproveitar-se da crise sanitária para concentrar mais poder na presidência ―como fez o líder húngaro Viktor Orbán―, Trump optou pelo negacionismo meia-boca, permitindo a permanência de cientistas sérios no seu próprio governo. Em vez de aprovar um grande pacote de estímulo e aumentar gastos públicos para a população mais pobre, o que provavelmente teria aumentado sua taxa de aprovação, Trump não tomou a dianteira no debate.
Diferentemente de muitos líderes autoritários que conseguiram se consolidar no poder, o presidente norte-americano nunca tentou engajar aqueles fora da sua base eleitoral. Suas tentativas de atrair o voto feminino pouco antes do pleito ―dizendo, durante um comício, “Mulheres suburbanas, vocês por favor podem gostar de mim?”― nunca foram sérias. Da mesma forma, apesar da boa vontade inicial no mercado financeiro, Trump jamais tentou controlar seus impulsos nas redes sociais, mesmo ciente de que a incerteza gera frustração em Wall Street.
O presidente poderia ter provocado tensões internacionais alguns meses antes do pleito, tática clássica para impulsionar o sentimento nacionalista e aumentar a aprovação popular. Diferentemente da grande maioria dos líderes autoritários, que entendem que a destruição de um sistema democrático requer foco, dedicação e paciência, Trump aproveitou-se da presidência, até o fim, para lidar com suas ansiedades pessoais. Como a professora Ayse Zarakol observa, “[Trump] não teve o foco de Putin, a coragem de Erdogan ou a crueldade de Rodrigo Duterte.”
A verdade alarmante é que uma versão igualmente autoritária, porém mais disciplinada, mais afável e empática, mais paciente e mais competente de Donald Trump, provavelmente teria sido reeleita com tranquilidade, e há muitos indícios de que o Republicano teria tido mais espaço para implementar medidas antidemocráticas no seu segundo mandato ―como, aliás, costuma acontecer na maioria das vezes quando a democracia morre lentamente.
Não restam dúvidas de que muitos americanos votaram em Biden no último 3 de novembro para defender a democracia. Muito sugere, porém, que a vitória do democrata não se deve tanto à rejeição às tendências autoritárias, mas ao repúdio pela incompetência do presidente Republicano. Como os resultados no Senado mostram, onde aliados de Trump conseguiram defender a maioria republicana e no Congresso, onde a maioria democrata diminuiu, o trumpismo nos EUA veio para ficar. A próxima ameaça autoritária que os EUA poderão enfrentar ―possivelmente já em 2024― dificilmente seria tão amadora quanto a de um tosco apresentador de TV, que pouco se interessa pelo ato de governar. Na hora de enfrentar um caudilho mais competente, o bloco democrático não poderá se limitar a jogar parado e torcer para que o candidato com ambições antidemocráticas se enforque sozinho. Esse risco é um luxo que os democratas não poderão mais ter.
Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel