Gestão grotesca da crise consolida isolamento internacional do Brasil, mas é fruto de um cálculo político sofisticado
Desde o início da pandemia, o Brasil ganhou destaque internacional como um dos integrantes da chamada “Aliança do Avestruz”, composta por países cujos líderes negam a gravidade ou mesmo a existência da covid-19. Além do presidente brasileiro, os ditadores da Nicarágua, Bielorrússia e Turcomenistão viraram chacota mundial ao minimizarem o risco ou recomendarem o consumo de vodca, fumaça de ervas, vermífugo e outras substâncias sem nenhuma evidência médica de ação contra a doença. Embora também defenda teses esdrúxulas sobre o vírus, o presidente americano Donald Trump não abraçou o radicalismo da Aliança do Avestruz. Enquanto sua recusa a endossar o negacionismo rendeu ao ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta uma demissão, Trump ainda não ousou demitir Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos e um dos principais especialistas do mundo em epidemias.
Desde então, chovem análises que pintam o Brasil como um país à deriva, liderado por um presidente imprevisível, sem norte e incapaz de articular uma resposta coerente à pior crise sanitária do último século, que já matou mais de 100.000 brasileiros. À deriva pode até ser, e o Financial Times acertou ao chamar o Brasil de “a country without a plan”: um país sem planejamento, sem perspectiva de como proteger a população ou de como se preparar para o mundo pós-pandemia. Enquanto nações com governos eficientes sairão da crise mais unificadas e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos, o Brasil sairá ainda mais fragilizado, polarizado e inseguro. Essa derrota humilhante no combate à pandemia fica mais difícil de engolir quando lembramos da tradicional liderança do país no âmbito da saúde pública e de sua vitória diplomática contra as grandes farmacêuticas há vinte anos, quando conseguiu quebrar patentes poderosas e produzir genéricos para controlar a pandemia de HIV. Hoje, a posição do Brasil no cenário mundial espelha aquela que o próprio Bolsonaro ocupou ao longo de quase três décadas no Congresso Nacional: isolado, conhecido por suas loucuras e sem qualquer influência.
Mas há método nessa loucura, e seria um erro acreditar que a atuação do presidente seja incoerente ou imprevisível. Ao contrário de Trump, que permitiu a presença de cientistas de verdade em seu Governo e chegou a ensaiar uma retórica mais séria em relação à crise, Bolsonaro não titubeou e abraçou o negacionismo de maneira consistente, implementando sua estratégia de forma sofisticada e disciplinada, resistindo às pressões nacionais e internacionais mesmo quando o custo dessa postura em vidas humanas ficou evidente. O centro da estratégia consiste em nunca assumir a responsabilidade e não virar o pai do problema, evitando arcar com o custo político brutal da crise econômica que virá.
Desde o início, Bolsonaro percebeu que a pandemia tinha potencial para causar a crise econômica mais profunda da história da América Latina. Esse vendaval pode criar um nível de instabilidade social capaz de fazer as manifestações que tomaram vários países da região em 2019 parecerem uma época de calmaria. A região já tinha o pior desempenho econômico do mundo antes da pandemia, e deve demorar anos para recuperar o PIB pré-covid. A história política recente mostra que, na América Latina, os presidentes conseguem se reeleger e fazer seus sucessores em tempos de vacas gordas. Já quem tem o azar de governar em anos de baixo crescimento tende a perder a eleição seguinte ou a cair antes dela. Não por acaso, os líderes brasileiros da década de 2001 a 2010 gozavam de altas taxas de aprovação e baixa probabilidade de impeachment: nessa época, o PIB crescia em média 3,7% ao ano.
A coisa mudou entre 2011 e 2020, e o fato do PIB brasileiro só ter crescido algo como 0,04% ao ano nos ajuda a entender não só a queda de Dilma Rousseff como a de seus vizinhos Fernando Lugo, Evo Morales e Pedro Kuczynski, igualmente retirados antes do fim de seus mandatos em um contexto econômico desafiador. Não é uma previsão arriscada dizer que a América Latina do pós-pandemia deve viver uma onda de instabilidade política, reduzindo as chances dos presidentes terminarem seus mandatos.
Diante deste cenário desolador, a decisão de Bolsonaro de minimizar o problema, criticar o distanciamento social e promover remédios sem comprovação científica está longe de ser uma estratégia incompreensível. Trata-se de uma aposta ardilosa e sofisticada, ainda que moralmente indefensável. Se o número de vítimas tivesse estacionado em 800, como ele chegou a prever no final de março, Bolsonaro poderia ter acusado os especialistas de alarmismo. Agora, com mais de 100.000 vítimas fatais e nenhum sinal de achatamento da curva, o presidente pode culpar a suposta futilidade das medidas de distanciamento social, empregando uma lógica torta de que, já que “todos pegarão” a doença de qualquer jeito, seria melhor manter tudo aberto e supostamente evitar a crise econômica. Na narrativa bolsonarista, a culpa pela pior crise da nossa geração recai sobre governadores, prefeitos, especialistas em saúde pública e, claro, sobre a China. São eles, e não o presidente, que devem arcar com o custo político.
A aposta de Bolsonaro ainda pode dar errado, mas é inegável que funcionou bem melhor do que muitos esperavam no início da pandemia. As condenações viraram um tanto protocolares. Se em tempos normais a insistência em promover a cloroquina geraria escândalo, agora foi normalizada. A militarização do Ministério da Saúde, a ausência de um ministro da Saúde, a incapacidade do presidente em reconhecer a dor de dezenas de milhares de famílias brasileiras, a insistência em não usar máscara em público: cada um desses fatos é inaceitável quando analisado individualmente. No entanto, o fluxo contínuo de notícias absurdas parece retirar a gravidade de cada uma delas. Ao contrário de Trump, que enfrenta uma campanha de reeleição bastante complicada devido à sua péssima gestão da crise sanitária, a aprovação do governo Bolsonaro recentemente subiu para 45%. “O cenário hoje é de Jair Bolsonaro reeleito”, afirmou recentemente Thomas Traumann, um dos observadores políticos mais experientes em atividade. Os panelaços de março e abril minguaram rapidamente. Simbólico pela normalização geral da tragédia, o Jornal Nacional desta quarta-feira (5/8) foi o primeiro em meses a não mencionar o coronavírus em suas palavras iniciais. O país parece estar anestesiado. Ainda estamos no começo da pandemia, mas não podemos descartar a possibilidade de que Jair Bolsonaro seja um dos grandes vencedores políticos da tragédia.