Guilherme de Queiroz-Stein*, Brasil de Fato
Qualquer concessão a uma “apuração paralela” das eleições de 2022 pelas Forças Armadas representa um grande risco à democracia. Primeiro, é preciso deixar claro que não se trata se uma “apuração paralela”, mas de uma estimativa de resultados eleitorais, que, se feita por amostragem, provavelmente chegará a resultados distintos da apuração oficial, mesmo que dentro de um intervalo de confiança. No pior cenário, em que o cálculo da amostra é feito de forma inadequada, a estimativa paralela pode chegar a números complemente distorcidos. Em ambos os cenários, poderão afetar a credibilidade do sistema eleitoral. Além disso, é uma ação totalmente desnecessária, representando um gasto inócuo de recursos públicos pelas Forças Armadas, pois nunca se registrou casos de fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras. Quando questionadas em 2014 pelo PSDB, a auditoria feita pelo próprio partido não encontrou qualquer indício de fraude. Neste ano, diversas entidades da sociedade brasileira, incluindo algumas das melhores universidades brasileiras, auditaram seu código-fonte e atestaram a segurança do sistema. Portanto, é uma medida extremamente duvidosa quanto a sua pertinência.
Também, é uma ação questionável em sua legitimidade. Primeiro, porque as Forças Armadas não têm essa atribuição institucional e nem competência técnica para essa avaliação. Segundo, ao longo da história brasileira, as Forças Armadas foram responsáveis por violações institucionais com drásticas consequências, envolvendo assassinatos, torturas, prisões, exílios e crises econômicas. Ou seja, não são guardiãs de nossa democracia. Pelo contrário, devem ser civilmente monitoradas e controladas. Terceiro, não são neutras. Estão subordinadas ao Presidente da República, que é uma das partes interessadas nesse processo eleitoral. O caráter político dessa demanda se expressa no seu ineditismo. Ao longo de três décadas de democracia brasileira, as Forças Armadas nunca se envolveram na apuração eleitoral, pois, como já dito, não é uma atribuição institucional. Neste momento, em que estão subordinadas a um político que questiona o sistema eleitoral, decidem agir. Ou seja, é basicamente uma ação política. Dessa forma, não é adequado o TSE convidar as Forças Armadas para incidir no processo eleitoral, indo além de suas atribuições relacionadas à logística e à garantia da ordem pública. Por si só, essa interferência passa a ser um fator de desconfiança, instabilidade e imprevisibilidade nas eleições.
De todo modo, é importante salientar que, caso os militares façam uma estimativa paralela dos resultados eleitorais, é preciso exigir o controle civil sobre o processo, antes, durante e após as votações. É preciso auditar a “auditoria”, designando representantes da sociedade civil para integrar a comissão responsável por essa avaliação, de preferência formando maioria nessa comissão, com ampla participação, também, de representantes de partidos de oposição. Além disso, é preciso ter ampla transparência em relação a quem serão os militares que integrarão essa comissão, os critérios de escolha e a definição de cada etapa da estimativa, com especial atenção para a definição da amostra de urnas. Vale reforçar que, a depender de como será feita a amostragem das urnas, é possível ter distorções significativas nos resultados das estimativas. Portanto, a construção dessa amostra e de todas as demais etapas deve ser supervisionada por órgãos com efetiva competência técnica, como o Conselho Federal de Estatística e a Associação Brasileira de Ciência Política e estar aberta a todas outras entidades da sociedade civil que desejarem fiscalizar o trabalho dos militares. Afinal de contas, como funcionários públicos, todas suas ações devem estar sujeitas ao escrutínio público. Sem isso, qualquer resultado dessa estimativa pode ser distorcido e destinado exclusivamente a colocar em xeque a democracia brasileira, favorecendo a perpetuação daqueles que atualmente ocupam o poder.
*Texto publicado originalmente no portal do Brasil de Fato.