Entre as tantas dificuldades que se impõem àqueles que estudam a História, duas delas são recorrentes e desafiadoras. Ambas, relacionadas entre si. A primeira é identificar a temporalidade necessária para o correto entendimento do objeto. A segunda é estabelecer as pontes entre as temporalidades, de modo que, ao fim, o maior número possível de explicações esteja à disposição. Não é verdade que a complexidade esteja em uma ou outra. Por exemplo, o entendimento relativo a um evento não é mais ou menos complexo do que aquele relativo à uma conjuntura ou à uma estrutura. Entender o início da Primeira Guerra Mundial a partir do evento do assassinato do representante austríaco em Sarajevo durante o ano de 1914, não é mais ou menos complexo do que entender a mesma Guerra a partir das mudanças relativas às lideranças europeias que ocorriam desde 1871.
O ideal é que o evento (o assassinato de Ferdinando) seja entendido isoladamente e em sua relação com a conjuntura (mudanças ocorridas desde 1871) concomitantemente. E a conjuntura, por sua vez, entendida em relação ao esgotamento de certos traços relacionados à estrutura mental e à ascensão do Iluminismo e do modelo de desenvolvimento econômico até então dominante no velho continente. Eventos, conjunturas e estruturas se isolam – e assim, isoladamente, são entendidas – ao mesmo tempo em que se complementam, possibilitando que ampliemos nossa capacidade narrativa e analítica.
O brutal e revoltante assassinato da socióloga e vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco, em meados deste mês de março, é uma dessas tragédias que catalisam uma corrida de interpretações e especulações acerca das responsabilidades envolvidas. Esperado e compreensível, então, que uma tragédia como essa logo seja emoldurada por eventos recentes, que seriam suficientes para explicar o que ocorreu. A eventual intervenção no Rio de Janeiro, associada ao conjuntural desmonte dos direitos patrocinado pelo atual governo nacional seriam responsáveis pela tragédia a que foi submetida Marielle. Mais do que isso, a intolerância de alguns ante a militância de Marielle, associada à radicalização das opiniões e posições ideológicas, polarizadas desde ao menos 1994, seriam as causas evidentes. Ou ainda, a escalada da violência, aliada ao tráfico de drogas e à falência da autoridade pública no estado do Rio, cujo auge se revela agora, mas que desde o governo de Brizola se constrói, nos dariam a melhor explicação sobre o que ocorreu.
Todas elas, eventuais ou conjunturais, parecem fazer sentido e nos ajudam a montar um quebra cabeça que, se não resolve, ao menos conforta aqueles que, com razão, estão assustados, indignados e tristes por viverem em um país assim. Contudo, nos falta a explicação estrutural. Tanto na definição da temporalidade que nos possibilita enxergar a longa História, quanto nas relações que podemos estabelecer entre a estrutura e os eventos.
As estruturas, aquelas de longa duração, se mostram pelos valores. Seria cômodo, não obstante correto, localizar na desigualdade a estrutura que nos marca na longa História. Mas, só nos é possível identificar tamanha desigualdade porque é possível vislumbrar, mesmo que abstratamente, a igualdade. E a igualdade como valor é descendente do Humanismo, aquele que antes de qualquer identificação do sujeito em suas relações sociais e políticas, o enxerga como humano. O historiador suíço Jacob Burckhardt, em sua obra clássica sobre a Renascença (A civilização da Renascença Italiana, de 1860), identifica o nascimento da modernidade como resultado do surgimento do indivíduo e, portanto, da individualidade. Após quase um século, o franco-argelino Albert Camus clamou pela radicalização do Humanismo em seu ensaio filosófico de 1951, O Homem Revoltado.
É esse humanismo, como valor fundamental, que nos falta (re) inventar. É ele, ou a sua fragilidade que, estruturalmente, nos leva a vivenciar e a entender a tragédia. Por isso, compreendo e respeito que as vozes e a revolta, decorrentes do assassinato de Marielle, depositem tamanha indignação na conjuntura ou em algo eventual. O evento, a conjuntura e suas relações nos ajudam a entender a História. Mas, a estrutura da longa História, e os valores e ideias que a povoam, podem nos revelar o problema em perspectiva mais ampla. É disso que precisamos.
Por isso, antes de sermos pretos, brancos, altos, baixos, homens, mulheres, esquerda, direita, coxinhas ou petralhas, ou qualquer outra definição social e política possível, somos humanos. A recuperação do país passa por essa História.
* Vinicius Müller é historiador, professor no Insper e colaborador do Blog “Estado da Arte” do jornal O Estado de São Paulo