Chanceler disse que momento certo para iniciar relação é depois da posse, mas esta não foi a experiência da diplomacia brasileira em transições anteriores de governo
Camila Zarur, O Globo
RIO — Apesar de o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ter afirmado que “ainda não é o momento” de se aproximar do futuro presidente americano, Joe Biden, pois ele ainda não tomou posse, a história das relações entre Brasil e Estados Unidos mostra o oposto. Em outros períodos de transição de poder em Washington, o contato com a gestão seguinte se dava antes mesmo da definição de quem assumiria a Presidência, segundo contaram ao GLOBO diplomatas que trabalharam na capital americana e especialistas em relações internacionais. Para eles, a demora em estabelecer uma relação com Biden pode dificultar o trato entre os dois países.
Segundo explica o ex-embaixador em Washington Rubens Ricupero, a aproximação é feita durante a corrida eleitoral com ambos os partidos. Além de estabelecer e estreitar os contatos, esta é também uma forma de se manter a par dos acontecimentos e informá-los ao governo brasileiro. Ricupero vivenciou isso em dois momentos: na eleição de Bill Clinton, em 1992, quando foi embaixador na capital americana; e em 1976, quando era chefe do setor político da embaixada e alertava o governo do general Ernesto Geisel de que o democrata Jimmy Carter venceria o pleito daquele ano.
— Nos Estados Unidos é considerado normal ter relação com os dois partidos, ninguém acha esquisito. Pelo contrário, todo embaixador e todo bom diplomata cultiva contatos com todos os lados políticos, sobretudo num posto em Washington, onde o Congresso tem uma influência grande sobre a política externa — explica Ricupero, que completa: — Em qualquer país no mundo é assim. Aqui no Brasil, não só o embaixador americano, como os cônsules de São Paulo e Rio convivem com pessoas de ambos os lados políticos. O normal é ter um contato permanente, não ficar esperando por uma oficialização.
Assim como Ricupero, Rubens Barbosa, que também foi embaixador em Washington, acredita que o período de transição é o momento para estreitar a relação com o futuro governo, que já deveria ter sido estabelecida durante a corrida presidencial. Foi o que diplomata fez em 2000, na conturbada eleição de George W. Bush, cujo resultado foi decidido após o julgamento da Suprema Corte sobre a votação na Flórida. Barbosa escreveu sobre isso em seu livro “O Dissenso de Washington”:
“Quando Bush tomou posse, esses contatos estabelecidos ainda no período eleitoral fizeram com que a embaixada brasileira já fosse interlocutora do novo governo e facilitaram muito o acesso à nova administração”, relata o embaixador no livro publicado em 2011.
Imagem negativa
Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador nos EUA, durante a campanha americana o presidente Jair Bolsonaro e seu governo só mantiveram contato com o lado republicano, se posicionando explicitamente a favor da reeleição de Donald Trump. Isso, segundo ele, gerou uma imagem negativa do brasileiro entre os democratas, que foi agravada com a postura que Bolsonaro teve após a eleição.
O presidente só reconheceu a vitória de Biden após o Colégio Eleitoral confirmá-la, no último dia 14, mais de um mês após o resultado ter sido projetado. Ele também endossou a narrativa de Trump de que houve uma suposta fraude na votação, embora o republicano não tenha apresentado evidências que comprovassem isso e nenhuma das mais de 50 ações impetradas tenha sido bem-sucedida em reverter ou anular votos.
— Entre os democratas, é terrivelmente negativa a imagem de Bolsonaro, seja como pessoa ou de seu governo em geral. Devemos agora correr atrás do prejuízo, procurando abrir pontes com congressistas e com os membros do governo que vêm sendo indicados pelo novo presidente americano. Não faz sentido só entrar em campo depois da posse. Não há tempo a perder — afirma o diplomata.
Abdenur acrescenta ainda que a demora para estabelecer esse contato não ajuda a melhorar os ânimos com os democratas e pode piorar o estado de espírito em relação ao Brasil por parte da equipe de Biden.
Essa percepção ruim em relação ao presidente brasileiro pode ser um obstáculo ainda maior para a aproximação entre os dois governos, salienta o cientista político e pesquisador de Harvard Hussein Kalout, que foi secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Michel Temer.
— Não depende apenas de o Brasil querer se aproximar. Depende se Biden vai querer abrir as portas para o governo Bolsonaro. O governo fez uma grande e única aposta em Trump, queimando todas as pontes com os democratas já na largada. Faltou à política externa brasileira maturidade, realismo e pragmatismo para entender a complexidade dessa eleição. A equipe de Biden pode não querer se aproximar de um governo que questionou o resultado que o elegeu presidente.
Segundo fontes em Washington, diferentemente do que Araújo afirma, integrantes do governo brasileiro já teriam tentado o contato com a equipe de transição do democrata, mas não foram recebidos. A repórter na Casa Branca da GloboNews, Rachel Krähenbühl, já havia noticiado essa tentativa de aproximação antes da votação, em 3 de novembro. No entanto, o próprio presidente Bolsonaro negou que isso tivesse acontecido.
Posição defensiva
Segundo o embaixador Celso Amorim, que foi chanceler no governo de Itamar Franco e nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, a retórica do atual ministro das Relações Exteriores indica uma posição defensiva do governo brasileiro diante de eventual resistência da equipe de Biden, que já apresenta uma série de divergências com a gestão Bolsonaro em temas como meio ambiente, direitos humanos e questões relativas aos direitos indígenas e quilombolas.
— Eles parecem estar assustados em tentar uma aproximação e receber uma negativa por parte de Biden. Então, para eles não terem esse dissabor, adotam essa narrativa de que não é o momento de ter esse contato — diz o ex-ministro, que vê nesse início um indício de como será difícil a relação entre os dois líderes — Dificilmente Bolsonaro se tornará amigo de Biden. Isso demandaria um esforço que acredito que não será feito. O governo Bolsonaro já tem um compromisso com a extrema direita no Brasil, que é ligada à extrema direita americana.
Amorim explica também que Biden, por sua vez, terá que fazer concessões em seu mandato para tentar unir um país e o próprio partido divididos e, por isso, deverá adotar uma postura mais dura com Bolsonaro nas questões em que os dois divergem.