Especialista diz que descontentamento generalizado leva à solidariedade popular com movimento dos caminhoneiros
Por Renan Setti, de O Globo
Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, o Brasil vive em “estado permanente e latente de indignação”, e é isso que explica a sustentação da greve dos caminhoneiros. Segundo o autor de “A Era do Imprevisto”, a organização horizontal dos manifestantes, que ocorre via WhatsApp, é sintoma da falta de representatividade do sistema político e dificulta as negociações com o governo.
O que explica essa greve?
De um lado, há uma motivação econômica. Saímos de um período de congelamento de preços para um de aumento diário, influenciado pelo câmbio e pela geopolítica. Isso elevou o custo do frete em um momento de crise. Além disso, o sistema de transportes brasileiro é de extrema exploração, com uma parcela grande de autônomos expostos a um leilão brutal e tendo que aceitar um frete quase de subsistência. Quando ele paga um pedágio alto, mesmo andando vazio, e vê o diesel disparar, existe uma indignação legítima. Do outro lado, há um sentimento difuso de inquietação e descontentamento.
Mas esse movimento também não atende a interesses corporativos?
Das concessões do governo, o frete mínimo é a única que atende aos autônomos. O resto é resultado do lobby das empresas. A empresa brasileira é viciada em subsídio. Eu não pesquisei o suficiente para saber em qual desses núcleos o movimento nasceu, mas sei o suficiente para saber que, sozinhos, os autônomos não conseguiriam fazê-lo durar tanto tempo.
Por que o governo encontra tanta dificuldade para desmobilizar a greve, mesmo com tantas concessões?
As lideranças verticais estão perdendo a capacidade de controlar movimentos que nascem de forma mais difusa e espontânea. Uma parcela grande deles não é representada por associações, criadas para representar profissionais formais. Agora, o “biscateiro” da carga, que estava desempregado e viu nas facilidade dadas pela Dilma a possibilidade de trabalhar, não é alcançado pelas lideranças. É muito mais fácil para ele se comunicar em rede, por meio do WhatsApp, com outros grevistas do que ligar a televisão e reconhecer o representante que diz negociar em nome dele. O verdadeiro autônomo hoje não faz parte da malha do sistema, mas é alcançável pela rede. É um fenômeno da transição. Em todas as categorias, quando houver esse tipo de problema, o governo não conseguirá lidar com os instrumentos tradicionais.
Então a organização virtual, em rede, foi fundamental para o surgimento dessa greve?
É um instrumento e será cada vez mais. Diante de um sistema político que não dá voz à sociedade, que só representa a si mesmo, a indignação da população se valerá cada vez mais desses canais. A culpa é do sistema político.
Em meu próximo livro, “Presidencialismo de coalizão” (que sai em agosto pela Companhia das Letras), trato da questão de fundo, que é a péssima qualidade das políticas de base no Brasil, por conta de uma visão de curto prazo e do “toma lá, dá cá” com o Congresso. Isso produziu políticas de muito má qualidade. Além disso, temos uma concentração absurda no governo federal. Essas questões se refletem em nossa estrutura tributária e fiscal absurdas. O sistema tributário é um Frankenstein. Tudo isso é um incentivo brutal ao clientelismo e impede os estados de buscarem suas próprias iniciativas.
O que explica o apoio de parcela importante da população ao movimento?
O Brasil apresenta nível quase unânime de indignação e insatisfação, com a política e com o governo. Cada vez que um segmento específico é mais apertado e se revolta, esse descontentamento explode na rede e ganha respaldo dos indignados em geral. O governo, desde a Dilma (Rousseff), prometeu coisa demais e não cumpriu. (O presidente Michel) Temer chegou prometendo o paraíso. Embora a inflação tenha caído, a melhora econômica não veio. Tem-se, então, uma sociedade em estado permanente e latente de indignação, o que gera uma reação espontânea de solidariedade com o outro. Mas isso é efêmero. Conforme o desabastecimento afeta o conforto, esse elas começam a enxergar um exagero e mudar de argumentação.
Qual será o impacto da greve nas eleições?
Será como o das manifestações de 2013. Só não sabemos para que lado mudará o quadro eleitoral. Mas está claro que o Brasil tem uma agenda que não dá para resolver. Nenhum dos pré-candidatos demonstrou ter noção da gravidade do problema. Não sei o que esperar das eleições diante de respostas tão esvaziadas. Foi um show de “vaselina” e contradições. Quando você é candidato a presidente, você tem obrigação de vir a público, expor as causas do problema e como enfrentá-lo. Aliás, é a hora de mostrar sua capacidade de articulação e participar da intermediação com os manifestantes, como fez o (Emmanuel) Macron, durante a campanha eleitoral na França, nos protestos na fábrica da Whirlpool.