Proposta, porém, pode emperrar, pois nem Câmara nem Senado se comprometeram a levá-la a voto
Nicholas Fandos, THE NEW YORK TIMES
Um comitê da Câmara dos Representantes votou nesta quarta-feira (14) por recomendar, pela primeira vez, a criação de uma comissão para estudar a possibilidade de oferecer reparações a afro-americanos pela escravidão nos Estados Unidos, além de um “pedido nacional de desculpas” por séculos de discriminação.
A votação antecipada no Comitê Judiciário da Câmara representou um marco histórico para os proponentes de reparações, que lutam há décadas para angariar apoio amplo para a proposta de indenizações pelos efeitos persistentes da escravidão. Parlamentares democratas do comitê aprovaram por 25 a 17 votos a legislação que cria a comissão, passando por cima das objeções de republicanos.
Intitulado HR 40 devido à promessa feita na época da Guerra Civil americana e nunca cumprida de dar “40 acres de terra e uma mula” aos ex-escravos, o projeto de lei ainda não tem grandes chances de virar lei.
Com a oposição de alguns democratas e dos republicanos unificados, que argumentam que os americanos negros não precisam de uma esmola do governo para compensá-los por crimes cometidos no passado distante, nem Câmara nem Senado se comprometeram a levar o projeto de lei a voto.
Mas no momento em que o país volta a encarar o racismo sistêmico exposto pela pandemia de coronavírus e pelas mortes de George Floyd e outros homens negros pela polícia, a medida está recebendo o apoio dos democratas mais poderosos do país, incluindo o presidente Joe Biden, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o senador Chuck Schumer, líder da maioria democrata na Casa. Pesquisas indicam que o apoio público à proposta também vem crescendo, embora ainda esteja longe de ser amplo.
“Estamos pedindo às pessoas que entendam a dor, a violência, a brutalidade do que sofremos, o modo como fomos tratados como propriedade privada”, disse a deputada democrata Sheila Jackson Lee, do Texas, durante debate do comitê na noite desta quarta. “E, é claro, estamos pedindo harmonia, reconciliação, razões para nos unirmos como americanos.”
O interesse renovado por reparações ocorre enquanto Biden tem posicionado a questão da correção das desigualdades raciais no centro de sua agenda política doméstica, propondo bilhões de dólares de investimentos em agricultores, empresários, bairros, estudantes e pobres afro-americanos. A Casa Branca disse que a agenda de empregos de Biden de US$ 4 trilhões (R$ 22,5 trilhões) tem por objetivo em parte “combater o racismo sistêmico e reconstruir nossa economia e nossa rede de segurança social de modo a possibilitar que todos na América alcancem seu potencial pleno”.
A questão das reparações a antigos escravos e seus descendentes é uma que divide e aflige políticos há gerações, envolvendo questões mais amplas sobre o legado do racismo na América e a negação branca dos efeitos deletérios da economia escravista. Ela também encerra problemas práticos espinhosos, tais como quem deveria se beneficiar, que forma as reparações poderiam assumir e como seriam financiadas.
O general do Exército da União William Tecumseh Sherman fez a primeira tentativa ampla de oferecer reparações em 1865, com uma ordem especial dada no campo de batalha de confiscar 400 mil acres de terras costeiras e doá-la em lotes a antigos escravos. Mas após a morte do presidente Abraham Lincoln, mais tarde nesse ano, seu sucessor, Andrew Jackson, prontamente rescindiu a medida. Nenhum plano subsequente jamais chegou perto de colocá-la em prática.
Parlamentares negros no Congresso começaram a trazer a questão à tona outra vez três décadas atrás, quando primeiro propuseram uma comissão para analisá-la.
O projeto de lei submetido ao Comitê Judiciário nesta quarta propõe a criação de um órgão para estudar os efeitos da escravidão e das décadas de discriminação econômica e social que se seguiram a ela, frequentemente com envolvimento do governo, e sugerir maneiras possíveis de corrigir o abismo de riqueza e oportunidade entre americanos negros e brancos. Também propõe a possibilidade de um “pedido nacional de desculpas” pelo mal causado pela escravidão.
Os proponentes de reparações por parte do governo federal divergem quanto à forma precisa que estas poderiam assumir. Alguns defendem pagamentos diretos de valores diferentes em dinheiro. Outros propõem que o ensino universitário seja gratuito para afro-americanos, e a concessão de empréstimos, sem juros para afro-americanos que querem comprar casa própria.
Evanston, no estado de Illinois, um subúrbio de Chicago, reservou US$ 10 milhões (R$ 56,3 milhões) neste ano para reparações, sob a forma de subsídios habitacionais para afro-americanos que possam comprovar que eles ou seus ancestrais foram vítimas de negação sistemática de bens ou serviços do governo ou setor público ou de discriminação habitacional de outro tipo. Mas qualquer programa nacional seria muito maior, com custos projetados para alcançar bilhões ou trilhões de dólares.
Embora sua administração não use o termo “reparações”, Biden tem abraçado versões de muitas dessas propostas em seus esforços para combater a pandemia de coronavírus e recolocar a economia americana em andamento. Por exemplo, sua lei de estímulo para combater os efeitos do coronavírus, o Plano de Resgate Americano, prevê investimentos de dezenas de bilhões de dólares em programas de assistência alimentar, pagamentos diretos a americanos e ajuda mensal a crianças —programas que se aplicam independentemente da raça dos beneficiados, mas que darão assistência importante a afro-americanos.
O plano também prevê US$ 5 bi (R$ 28,1 bi) em auxílio e alívio de dívida para ajudar agricultores negros para mitigar anos de discriminação nas políticas de crédito agrícola a subsídios a agricultores negros.
“Entendemos que não precisamos de um estudo para adotar ações agora, já, contra o racismo sistêmico”, disse em fevereiro a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki. “Então, enquanto isso, o presidente quer adotar ações dentro do próprio governo.”
As propostas de Biden para os empregos e a infraestutura, que agora estão no topo da pauta do Congresso, preveem ir além, alocando centenas de milhões de dólares para negros, pardos e outras “comunidades carentes” por meio de formação profissional, investimentos em escolas, subsídios a financiamentos imobiliários, crédito a empresas, substituição de tubulações de chumbo e limpeza de resíduos tóxicos.
Uma medida proposta prevê US$ 20 bilhões (R$ 112,5 bilhões) para reconectar bairros, muitos deles historicamente negros, destruídos por rodovias interestaduais; outra prevê a alocação de US$ 20 bilhões para aprimorar as capacidades de pesquisa de faculdades e universidades historicamente negras.
Os republicanos rejeitaram muitos dos programas, tachando-os de desnecessários, impopulares ou caros demais, e parecem estar se mobilizando para fazer oposição direta a eles no Congresso, a não ser que os democratas concordem em reduzi-los substancialmente.
Mesmo que os programas sejam promulgados em lei, acadêmicos que se destacaram na discussão sobre reparações insistem que os planos de Biden não constituem um substituto para reparações. William Darity, da Universidade Duke, professor de políticas públicas e autor de um livro sobre reparações, disse que propostas como as de Biden não enfrentam o problema diretamente.
“Se estamos falando das consequências plenas sobre a riqueza afro-americana, sobre a destruição de empresas ou bairros inteiros, sobre a miséria e a perda de terras, estamos falando em cifras que estão muito além do alcance dessas iniciativas programáticas de âmbito relativamente restrito”, falou Darity.
Sua visão de reparações foca em primeiro lugar a redução da disparidade de renda entre afro-americanos e brancos, algo que ele estima que exigiria US$ 10 trilhões (R$ 56,3 trilhões) ou mais em fundos governamentais —um valor enorme que é rejeitado por parlamentares de ambos os partidos.
“A reparação é divisiva. Ela indica que seríamos uma raça infeliz e sem esperança que nunca fez nada senão esperar que brancos viessem nos ajudar —e isso é uma falsidade”, disse durante o debate nesta quarta o deputado republicano Burgess Owens, de Utah, que é descendente de escravos. “É degradante para a geração dos meus pais.”
Owens comparou a ideia de reparações a “uma redistribuição de riqueza ou socialismo” e argumentou que o que os afro-americanos precisam é que o governo saia de seu caminho enquanto eles se esforçam para subir na vida com seu próprio trabalho, como fizeram gerações anteriores.
Alguns democratas compartilham essa visão. Outros hesitam em apoiar um projeto de lei que temem que os republicanos possam usar como arma contra eles, retratando-o como um esforço radical para usar o governo para implementar uma agenda politicamente correta.
Tradução de Clara Allain