Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles
Flávia Barbosa / O Globo
RIO – Quando a Estação Primeira de Mangueira atravessou a Sapucaí em 2019 cantando os rostos, a força, a representatividade e o legado de Dandaras, Marias, Mahins, Marielles e malês, no arrebatador enredo “Histórias para ninar gente grande”, a escola de samba vestiu de arte o que para gerações de mulheres e homens é luta: a ressignificação da História do Brasil. De maioria negra, mas marcado profundamente pela escravidão e o racismo estrutural, o país, ao escrever a narrativa de sua construção como nação, negou olhar, voz e experiências aos pretos. Simbolicamente, à luz do grande público e em verde e rosa, naquele desfile o protagonismo foi devolvido.
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— Foi catártico. A abolição não era concessão da Princesa Isabel, tínhamos ali os abolicionistas negros, Luís Gama, José do Patrocínio. Quase morri com a ala da imprensa negra, ninguém sabe da atuação negra neste espaço. Mas eu mudaria o verso ‘histórias que a História não conta’ para ‘histórias que a nossa História já conta, escrita por pessoas negras do presente sobre pessoas negras do passado’ — afirma a historiadora Ana Flávia Magalhães, da Universidade de Brasília (UnB).
Ela é uma das fundadoras da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, que mobiliza cerca de 300 pesquisadores de todas as regiões com o objetivo de mudar o olhar sobre o estudo do povo negro no Brasil. Sai a historiografia clássica, escrita por profissionais majoritariamente brancos e interessada na escravidão, e entra uma abordagem focada na construção da liberdade, no pós-abolição e nas trajetórias individuais e coletivas.
Ampliam-se também os espaços de diálogo. A pesquisa rompe os muros das universidades, de onde o povo negro era estudado com distanciamento, e ganha a internet, com a coluna semanal “Nossas Histórias” e o programa mensal “Pensar africanamente”.
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— A historiografia escrita por estudiosos negros faz da ancestralidade objeto de estudo, utilizando a subjetividade de quem vive o racismo. Esta experiência muda a perspectiva — reflete Ana Flávia.— Há também forte impacto das ações afirmativas e da presença de professores das escolas públicas nas universidades neste olhar. Há muito repertório mobilizado.
A ancestralidade é, aliás, a força motriz do movimento. Em 1971, o Grupo Palmares propôs o dia 20 de novembro, morte de Zumbi, como data de celebração da Consciência Negra e do povo como agente de sua história, em contraposição à passividade e “desumanidade” do 13 de maio, dia da Abolição. A ideia ganhou força com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e foi lapidada pelo surgimento de importantes historiadores negros (e dos negros) na década de 1980.
Mas como consolidar uma História que mostre um Brasil mais negro, e portanto mais real? A Rede ressalta três caminhos importantes: a Educação antirracista, a visibilidade de personagens e trajetórias e o reconhecimento do patrimônio público. Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles.
‘Nossas heranças: os patrimônios negros no Brasil’
Os bens culturais são cruciais porque ajudam a transformar a visão sobre a identidade do país
Francisco Phelipe Cunha Paz e Mônica lima
RIO – Você sabia que é possível traçar uma história dos patrimônios negros no Brasil desde 1938, quando ocorreu o tombamento do acervo Nosso Sagrado – antiga Coleção do Museu da Magia Negra e primeiro bem etnográfico reconhecido — até 2017, quando o Cais do Valongo se tornou Patrimônio Mundial? Nesses 79 anos, as práticas de patrimonialização, como uma das formas de “usos do passado” têm sido disputadas pelos movimentos sociais negros, populações negras, Estado, intelectuais, acadêmicos e instituições de memória.
Desde os anos 1980, pressões desses sujeitos políticos têm exigido do Estado brasileiro mudanças nos valores e práticas das políticas públicas de memória, por entender que cumprem função estratégica na conquista de direitos e na luta contra o racismo. O reconhecimento de bens culturais de matrizes não-hegemônicas, negras e indígenas, especialmente, é fruto dessa pressão. Trata-se de uma dinâmica que tem acelerado até mesmo um processo interno de reelaboração técnica dos paradigmas de representação da nacionalidade por vias oficiais.
Tal processo produziu diversos patrimônios negros que hoje figuram na lista de patrimônios culturais nacionais, sejam como bens materiais ou tangíveis, tais como os Terreiros de Candomblé, templos católicos de irmandades negras e, mais recentemente, as Docas Pedro II e o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo. Há também os que foram reconhecidos como bens imateriais ou intangíveis, como as Celebrações: Bembé do Mercado (BA), Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (RJ), o Complexo Cultural Bumba Meu Boi (MA); os Saberes: Mestres de capoeira, Baianas de acarajé, Sistema agrícola tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP); e as Formas de expressão: Samba de roda (BA), Tambor de crioula (MA), Marabaixo (AP), Carimbó (PA), Maracatu (PE), Matrizes do samba do Rio de Janeiro (RJ) e o Jongo do Sudeste, para citar alguns. No reconhecimento desses patrimônios, mobilizam-se fontes variadas, mas, sobretudo, conhecimentos e informações dos detentores desses bens culturais, seus formuladores e guardiões.
Se há uma narrativa que busca aprisionar os sujeitos negros no silêncio ou mesmo os apagar da memória e da história da sociedade, há outro discurso em que, de forma vigorosa, seus criadores atualizam e ritualizam ancestralidades africanas numa luta contra o esquecimento. São esforços por direito à memória e a uma narrativa do passado mais justa. E, principalmente, a construir suas próprias maneiras de lembrar, narrar e fazer uso desses passados.
Para a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995), o negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. Os patrimônios negros, valorados como herança no presente, reconstroem esse gesto, para além da dor e do trauma da colonização e da escravidão, mas sem negar ou diminuir seu impacto sobre nossos corpos e vidas. Por isso, significam tanto para a discussão da consciência negra, porque reposicionam a visão sobre a identidade brasileira.
*Francisco Phelipe Cunha Paz, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (Iphan),
**Mônica Lima, professora de História da África e Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA/UFRJ)
‘O legado político das mulheres negras’
Marcha há seis anos foi singular por reivindicar atenção à tradição feminina em projetos emancipatórios
Mariléa de Almeida e Taina Silva Santos
CAMPINAS – Há seis anos, na antevéspera do Dia Nacional da Consciência Negra, mais de 50 mil mulheres negras marcharam até Brasília em protesto contra o racismo, a violência, a intolerância religiosa e pelo bem viver. Na frente do Congresso, a Marcha Nacional das Mulheres Negras questionou hierarquias construídas sob a dominação branca e patriarcal, reunindo trabalhadoras urbanas, camponesas, quilombolas, mulheres dos movimentos de luta pela moradia, religiosas de matriz africana e tantas outras.
O texto de abertura da carta do movimento deu o tom do debate: “Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha inspiradas em nossa ancestralidade que nos fez portadoras de um legado capaz de ofertar concepções que inspirem a construção e consolidação de um novo pacto civilizatório”. Há séculos, mulheres negras têm dado respostas aos mecanismos de exclusão de uma sociedade marcada por sistemas violentos de discriminação.
O protagonismo político das mulheres negras é perceptível em diversos momentos da história do Brasil, por meio de articulações estabelecidas dentro e fora dos espaços de sociabilidade negra. Estudos históricos apontam a importância das mulheres africanas e afro-descendentes na sustentação de famílias negras na escravidão e na liberdade e na formação de linhagens longevas nos campos e nas cidades. Ademais, elas estabeleceram redes por meio dos ambientes de trabalho, de forma que a atuação no comércio proporcionou recursos para a compra de número considerável de alforrias e ocupação de espaços sociais no mundo livre.
Desse modo, os agenciamentos contemporâneos das mulheres negras em defesa da vida e da liberdade não representam uma novidade. O que torna o momento atual singular é que, coletivamente, elas reivindicam o reconhecimento público de uma tradição feminina negra na criação de projetos emancipatórios para suas comunidades e o próprio país. Tal atitude foi impulsionada pelos aportes oferecidos pelos feminismos negros, mulherismo africana e toda gama de conhecimento criado por mulheres negras de diferentes classes sociais. Ao valorizar dimensões da vida como o cuidado, o afeto e a transmissão das experiências negras, o pensamento feminino negro torna visível a radicalidade política do seu legado.
A marcha exprime continuidades e descontinuidades de um longo processo, tornando-se, portanto, um acontecimento incontornável para a compreensão do presente e a ampliação de repertório de sujeitos centrais da luta antirracista e do país. A esse respeito, sumarizou Luiza Bairros (1953-2016): “Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Desconsiderando a mulher negra. Sem isso você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada. E a marcha está dizendo isso”.
Mariléa de Almeida, doutora em História (Unicamp)
Taina Silva Santos, mestranda em História (Unicamp)
‘História do Brasil ensinada pelo Movimento Negro’
Amilcar Pereira e Stephane Ramos
Crianças e jovens de diferentes cores de pele precisam aprender sobre a trajetória de lideranças pretas brasileiras
RIO – Quando perguntados sobre personalidades do movimento negro em sala de aula, estudantes lembram de Martin Luther King, Malcolm X ou Panteras Negras. As referências para pensar o antirracismo são sempre as vindas dos Estados Unidos, como se não houvesse movimento negro com força no Brasil. O diagnóstico feito por Jéssika R. S. Silva, professora de História da rede estadual do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela UFRJ, aponta para uma lacuna de toda a comunidade escolar.
O que muitos alunos, mães e pais não sabem é que o movimento negro no Brasil, a exemplo da Frente Negra Brasileira (FNB), maior organização política do tipo na primeira metade do século 20, foi fonte de inspiração para a luta dos negros americanos. Nessa mesma linha, a Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, foi uma conquista do movimento negro deste país. Algo que o movimento negro nos Estados Unidos nunca conseguiu alcançar.
Angela Davis, intelectual ativista americana de longa trajetória, já afirmou em diversos momentos o quanto ela aprende com as pautas e ações organizadas pelo movimento negro daqui. Em sua avaliação, Lélia Gonzalez (1935-1994), pensadora negra feminista brasileira, lhe ensinou muito mais do que ela teria a nos ensinar.
Embora ainda não reconheçamos amplamente as organizações e as lideranças do movimento negro brasileiro — por nome e sobrenome — nas escolas e na sociedade como um todo, temos lidado com os resultados de suas ações. A lei citada e as políticas de cotas para negros e negras nas universidades e serviços públicos são fortes expressões dessa agência histórica.
Como essas conquistas foram possíveis? As respostas demandam o nosso conhecimento das diversas trajetórias de luta da população negra brasileira, porque elas dão a medida do que nós somos como Nação, porque são parte incontornável da História do Brasil. As crianças e jovens nas escolas, negras em sua maioria, precisam saber que a luta antirracista aqui produziu lideranças e organizações negras como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento (1914-2011), Oliveira Silveira (1941-2009), Carlos de Assumpção (1927-), Lydia Garcia (1938-), Ana Célia da Silva (1940-), Edson Cardoso (1949-), Sueli Carneiro (1950-), Zélia Amador (1951-), a FNB, o Movimento Negro Unificado (MNU), entre tantos outros sujeitos individuais e coletivos que têm ajudado a mudar o Brasil por meio da luta antirracista.
A Rede de HistoriadorXs NegrXs tem se somado a esses esforços em suas ações internas e externas para aquilo que o MNU já reivindicava em sua Carta de Princípios de 1978: “a reavaliação do papel do negro na História do Brasil”. Isso significa que as vidas negras precisam ocupar os currículos, as escolas e qualquer espaço na proporção de sua real relevância! Estamos atuando para efetivamente fazer valer a máxima: Vidas Negras Importam!
Amilcar Pereira, doutor em História (UFF) e professor da Pós-Graduação em Educação e em Ensino de História (UFRJ)
Stephane Ramos, doutoranda em História (UnB) e mestre em História Comparada (UFRJ)
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