O culto à personalidade e o voluntarismo voltam à história com força inusitada
Este é o título, em tradução livre, do esplêndido e arrepiante livro “How Democracies Die”, um estudo histórico e comparado dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Trata-se de um completo trabalho em torno da tese de que os autocratas não obrigatoriamente tomam o poder através de golpes de Estado. Mas em inúmeros exemplos, ao contrário, valem-se do próprio regime democrático e fundam seus próprios partidos para golpear o poder, já eleitos. Foi assim com Mussolini, que inaugura a extensa lista de casos relatados detalhadamente no livro, passando por Hitler, Getúlio Vargas e vindo até Chávez, que teve seu trampolim no próprio constitucionalista Rafael Caldera ao sair aquele do cárcere para fazer política. Perguntado para onde iria ao sair da cadeia, Chávez teria respondido: “Para o poder!”
Pelo fato de os autores serem americanos, ou talvez também pela forte tradição democrática da nação do “We, the people” do introito da Constituição da maior democracia do Planeta, ou por ambos os motivos, há um capítulo extenso à parte dedicado às eleições de 2016, que, inacreditavelmente, levaram ao poder a esdrúxula figura de Donald Trump. E, claro, o risco que passou a representar para o ideal de democracia dos Founding Fathers dos EUA. E, ainda, o que isso poderá reverberar nas demais democracias do continente, inclusive na nossa.
O livro é extremamente importante para o decisivo momento histórico vivido pelo Brasil, embora estude apenas até o período Vargas, já que, de lá para cá, há copiosa obra de brasilianistas americanos sobre o tema, capitaneada pelo famoso “Brasil — De Getúlio a Castello”, clássico de Thomas Skidmore, também de Harvard. Não faz reflexões expressas sobre o atual momento, até porque a primeira edição foi de 2018, quando se travava a luta plebiscitária eleitoral brasileira do segundo turno. Mas deixa nas entrelinhas do estudo comparado os riscos terríveis que correm a nossa atual democracia e outras mundo afora.
De Erdogan na Turquia ao pupilo bolivariano de Chávez, Maduro, há um vento desfavorável à democracia mundo afora e o Brasil, imagina-se, não estaria fora dessa tormenta. Ao contrário, a continuar esse discurso maniqueísta que tomou conta da nossa política, através do falso e jurássico dilema de confronto da “direita” versus a “esquerda”, nossas chances são mínimas de não naufragar nessa borrasca mundial. Os mecanismos que evoluíram de Cromwell e Montesquieu até o atual modelo de freios e contrapesos (os check and balances do modelo americano) entre os Três Poderes, hoje em muito auxiliados pelo fortalecimento constitucional do Ministério Público e os ouvidores do povo, do tipo sueco do ombudsman e do defensor del pueblo , espanhol, não têm tido o condão de reverter o avanço célere dessa nova onda de autocracias, ainda que disfarçadas camaleonicamente no rótulo de democracias.
O culto à personalidade e o voluntarismo voltam à história com força inusitada. Proliferam os salvadores da pátria e os nacionalistas acerbos, restando ao cidadão comum apenas refletir e, ainda assim muito timidamente, sobretudo no gueto da academia, mobilizar-se nessas reflexões sobre o cruel momento, em favor de uma urgente inflexão ao centro democrático. E aos que creem em Deus, por Ele e pela luz permanente do Divino Espírito Santo, orar fervorosamente. Os autores são céticos quanto às alternativas. Pelo ótimo estudo contido no livro, a História Universal está em franco desfavor dos verdadeiros democratas. Estão de volta os condottiere , os refugiados, os muros e as cercas.
*Nelson Paes Leme é cientista político