Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O pensamento liberal no Brasil muitas vezes é traduzido com segundas intenções. Por exemplo, na Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, o direito à propriedade privada não foi adotado para favorecer o florescimento de uma economia capitalista como as que se desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos, mas para proteger o regime escravocrata.
O dogma liberal era invocado sempre que se falava de abolição, pois os escravos eram considerados propriedade inalienável. Ou seja, um fundamento das revoluções burguesas serviu a três gerações de escravocratas, até 1888. Hoje, o racismo estrutural, a causa de muitas das nossas desigualdades, é um mal invisível, que ninguém confessa, como a inveja.
De igual maneira, a nossa legislação trabalhista surgiu durante a Carta Magna de 1937, a constituição fascista do Estado Novo. Nem todos os seus dispositivos estavam a serviço do regime autoritário, mas toda a parte que envolvia os direitos coletivos, como greves, sindicatos, convenção coletiva e mesmo a Justiça do Trabalho, serviam ao corporativismo estatal inspirado na Carta del Lavoro, fascista. Entretanto, o engessamento da legislação trabalhista e sindical não impediu o posterior desenvolvimento dos direitos dos trabalhadores nem o avanço nas relações sociais.
Não é de se estranhar que o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do chamado inquérito das fake news, esgrimam o princípio da liberdade de expressão contra o Estado democrático de direito. No caso do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que desafia o STF, se invoca o princípio da liberdade de expressão com a mesma esperteza que os senhores de escravos defendiam o direito à propriedade privada.
A liberdade de expressão é uma conquista de toda a humanidade, faz parte dos direitos fundamentais das pessoas, nas legislações da ONU, convenções internacionais e países democráticos. No Brasil, esse conceito dá suporte à democracia, pois afasta a ideia de censura que marca os governos autoritários. Soberania, cidadania, dignidade humana, valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político estão associados à liberdade individual. A filósofa Hanna Arendt dizia que o pensar e o agir politicamente são o fundamento da condição humana, que não pode ser dissociada da liberdade de opinião.
Obama e Rússia
O Art. 5º, IV da Constituição Federal diz: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Entretanto, é assegurado o direito de resposta aos prejudicados, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V). No Art. 200, a lei diz: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Porém, há limites para esse direito, em especial quando é utilizado para violar ou negar garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição. Por exemplo, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
No Brasil, a lei não admite censura, mas há responsabilização, inclusive punitiva. O Estado democrático não restringe informações e ideias, mas deve responsabilizar o cidadão que não respeite o direito dos demais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ex-presidente Barack Obama faz autocrítica de não ter se preocupado com as fakes news como deveria.
Agora, promove um debate sobre o funcionamento das redes sociais e sua utilização para influenciar o resultado das eleições. Acusa a Rússia de favorecer a eleição de Donald Trump “trolando” as redes sociais norte-americanas. O The Washington Post, recentemente, dedicou um editorial ao tema, a propósito dos questionamentos de Obama, que fez um apelo para que as empresas de tecnologia se “redesenhem” para proteger o público da polarização de falsidades on-line. Em um longo discurso na Universidade de Stanford, localizada no coração do Vale do Silício, Obama falou sobre as maneiras pelas quais as plataformas de tecnologia ajudaram a dividir o público, espalhar desinformação e corroer a confiança nas instituições democráticas, levando à ascensão de autocratas e mortes desnecessárias pelo coronavírus.
“As pessoas estão morrendo” por causa da desinformação nos serviços de mídia social, disse ele. As empresas não estão sendo transparentes com o público sobre como seus algoritmos — o software que usam para espalhar conteúdo em seus serviços — funcionam.
Obama afirmou que, quando era presidente, não percebeu “como nos tornamos suscetíveis a mentiras e teorias da conspiração, apesar de ter passado anos sendo alvo de desinformação”, dizendo que ainda guarda arrependimentos até hoje. A desinformação refere-se a uma campanha coordenada por líderes políticos, corporações ou outras figuras para espalhar falsidades prejudiciais e narrativas enganosas.