Em breve, o Brasil voltará às urnas para escolher seu presidente, e mais uma vez a corrupção ocupa lugar central no debate público. Diante dos graves fatos revelados no passado, entre eles pela Operação Lava-Jato, são muitos os que relutam em confiar seu voto ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, receosos de que sua eleição represente um retrocesso na luta contra a corrupção.
Nós somos pesquisadores e professores que dedicamos nossa carreira acadêmica e profissional ao estudo da corrupção, da ética, da integridade e da transparência. Estudamos e conduzimos nossas pesquisas no Brasil e em países por todo o mundo. Temos como ponto de partida as mais variadas áreas do conhecimento, como Direito, Economia, Administração, História, Ciência Política e tantas outras. Em comum, produzimos conhecimento capaz de ajudar a compreender este grave problema social que é a corrupção.
Considerando a centralidade que o estudo da corrupção ocupa em nossas vidas, reconhecemos que, para muitos, pode ser surpreendente saber que, no próximo dia 30, votaremos no ex-presidente Lula. Cada um de nós chegou a essa decisão por um caminho distinto; no entanto, estamos unidos pela certeza de que não há qualquer contradição entre o nosso voto e o nosso compromisso com a agenda anticorrupção. Pelo contrário, ambos refletem uma mesma convicção: a de que não há luta contra a corrupção sem democracia.
Nas últimas décadas, sucessivas investigações revelaram fartas evidências sobre o extenso conluio entre certas lideranças empresariais e políticas às custas do interesse público, o que contribuiu para que muitos brasileiros passassem a desconfiar profundamente do sistema político; é preciso reconhecer, no entanto, que essas perniciosas práticas só vieram à luz graças a avanços institucionais e normativos ocorridos desde o advento da Constituição de 1988, muitos dos quais foram desenhados, implementados e aprimorados sob intensa pressão e diálogo com a oposição, sociedade civil organizada, imprensa profissional e comunidade internacional – algo que só acontece em democracias.
É impossível separar, portanto, o fortalecimento do combate à corrupção das conquistas democráticas obtidas ao longo das últimas décadas. Ainda que não de forma linear, esse processo de fortalecimento pode ser observado em todos os governos até o advento da operação Lava Jato – incluindo os governos petistas, durante os quais o Brasil deu passos importantes para o desenvolvimento do arcabouço jurídico-institucional de combate à corrupção.
Tal processo foi interrompido com a eleição, em 2018, de Jair Bolsonaro. Apesar de ter se elegido com a promessa de levar o país a um novo patamar de integridade e romper com as tão criticadas práticas da política nacional, os quatro anos seguintes foram marcados por sucessivos escândalos de corrupção, alianças com os setores mais clientelistas da política nacional, interferência política nos órgãos de investigação, desconstrução do aparato jurídico-institucional de combate à corrupção, e enfraquecimento do controle social e da transparência pública.
Esses diversos retrocessos – fartamente documentados em publicações acadêmicas, manifestações da sociedade civil organizada e até mesmo por organizações internacionais – convergem para uma única e inevitável conclusão: o suposto compromisso de Bolsonaro com a luta contra a corrupção é apenas retórico. A bandeira anticorrupção só lhe interessa enquanto arma eleitoral para instigar a população brasileira contra seus adversários.
Ainda mais grave que a falta de compromisso de Bolsonaro com a agenda anticorrupção é sua falta de compromisso com os valores democráticos e com o Estado de Direito. A luta contra a corrupção não é um fim em si mesmo. Antes, ela é inspirada pela constatação de que a corrupção é um dos maiores obstáculos à capacidade do Estado de fazer frente às muitas desigualdades existentes e de servir adequadamente à população, garantindo a todas e a todos os seus direitos fundamentais. O combate à corrupção, portanto, é apenas instrumento de um fim maior: a garantia de direitos. Disso decorre que a agenda anticorrupção não avança às custas das instituições democráticas e do Estado de Direito, e sim deve ser pautada por eles.
Ao longo de sua trajetória política e de seu mandato como presidente da república, Bolsonaro deu reiteradas provas de que não compartilha dos valores democráticos que animam a Constituição de 1988. De sua expressa admiração pela ditadura militar e por torturadores à tentativa de disseminar desconfiança em relação à integridade do processo eleitoral, passando pelo constante ataque aos poderes constituídos – hoje não resta qualquer dúvida de que Bolsonaro representa uma ameaça concreta e iminente à democracia brasileira. E não é por outro motivo que tantos adversários históricos do ex-presidente Lula deixaram suas divergências de lado e se uniram em torno de sua candidatura – pois ele representa hoje a única alternativa a um projeto de desconstrução da república.
Votar em um candidato não significa aderir ao seu governo; às vezes, só nos é dado escolher a qual governo faremos oposição. E muitos de nós, abaixo-assinados, certamente optarão por fazer oposição ao governo eleito. Mas, entre fazer oposição a um governo democrático e fazer oposição a um governo autoritário, a nossa escolha será sempre pelo governo democrático.
Votar em Lula, portanto, de modo algum apaga a consciência crítica que cabe a cada cidadã e a cada cidadão cultivar numa democracia plural como o Brasil; pelo contrário, é justamente essa consciência crítica que nos leva a reconhecer a excepcionalidade da escolha que se coloca hoje perante os brasileiros.
Votar em Lula é expressar a convicção de que o avanço no combate à corrupção não virá por meio de bravatas nem de palavras de ordem; é expressar a convicção de que o combate à corrupção não pode ocorrer às custas da ordem democrática; a convicção de que, pelo contrário, qualquer avanço nessa matéria só será sustentável quando acompanhado pelo fortalecimento das instituições e dos valores democráticos; em suma, a convicção de que não há combate à corrupção sem democracia.
Carta escrita por pesquisadores e professores. Assinam a carta:
Amon Barros
André Assumpção
Andreia Reis do Carmo
Armando Castro
Bárbara Alencar Ferreira Lessa
Beatriz Silva da Costa
Bruno Pinheiro Wanderley Reis
Bruno Wilhelm Speck
Caio César de Medeiros Costa
Caio Coelho
Camila Pagani
Cecília Choeri
Conrado Hubner Mendes
Eduardo Saad Diniz
Fabiano Engelmann
Fabio de Sa e Silva
Fernanda Odilla
Fernando Filgueiras
Frederico Lustosa da Costa
Graziela Dias Teixeira
Guilherme France
Guilherme Siqueira de Carvalho
Isabel Cristina Veloso de Oliveira
Jamile Camargos de Oliveira
João Mendes Rocha Neto
José Álvaro Moisés
José Sérgio da Silva Cristóvam
Juliane Sant’Ana Bento
Leonardo Avritzer
Letícia Meniconi Barbabela
Ligia Mori Madeira
Luciano Da Ros
Luiz Fernando Vasconcellos de Miranda
Manoel Galdino
Manoel Gehrke
Marco Antonio Carvalho Teixeira
Marcos Fernandes Gonçalves da Silva
Maria Dominguez
Maria Eugênia Trombini
Mariana Carvalho
Mariana Mota Prado
Marjorie Marona
Marta Rodriguez de Assis Machado
Michael Freitas Mohallem
Miguel Reale Júnior
Nara Pavão
Paula Chies Schommer
Paulo Roberto Neves Costa
Rafael Cláudio Simões
Ranulfo Paranhos
Raquel de Mattos Pimenta
Renato Chaves
Rodrigo Rossi Horochovski
Rogério Arantes
Rossana Guerra
Suylan de Almeida Midlej e Silva
Thiago José Tavares Ávila
Vanessa Elias de Oliveira
Vinicius Reis
Wagner Pralon Mancuso
Se você é professor ou pesquisador na área de estudos da corrupção e gostaria de assinar a carta, envie um e-mail para pesquisa.anticorrupcao@gmail.com, com seu nome e instituição a que está vinculado.