Murillo de Aragão: Sobre culpas e omissões

A questão da segurança pública até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

A questão da segurança pública até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece

As crises na segurança pública repetem-se periodicamente no Brasil. Ainda que os índices melhorem aqui e ali, em 2016, por exemplo, registraram-se quase 70 mil mortes por homicídio e latrocínio no País. Rebeliões em presídios são recorrentes. Greves de policiais também, assim como o pedido de participação das Forças Armadas na segurança dos Estados.

A sequência de eventos, que só pioram a cada ano, alimenta o debate sobre de quem seria a culpa por esta situação. União e Estados acusam-se mutuamente. Já especialistas dizem que ambos erram, ou seja, a responsabilidade seria de todos. É verdade. A culpa é de todos, e não só dos Estados e da União. A culpa também é, portanto, das elites brasileiras, que tratam o tema de forma episódica.

Quem pode contrata segurança privada e usa carro blindado. Quem não pode sofre. E o tema não chega às mesas de decisão por indiferença das elites e omissão da classe política. As próprias categorias profissionais envolvidas em geral só se mobilizam para tratar de interesses da corporação, pouco contribuindo para o aprimoramento das políticas de segurança no País. Só em Brasília, mais de dez delegados de polícia devem se candidatar a deputado distrital e federal neste ano. A agenda preferencial, porém, é equiparar salários com a Polícia Federal, e não melhorar a segurança pública.

Ao permitirem que o corporativismo prevaleça sobre as agendas do bem comum, nossas elites assumem culpa grotesca. Semelhante à culpa das elites venezuelanas, que fracassaram e deixaram o país chegar às mãos de Hugo Chávez. A Venezuela paga até hoje pela omissão das elites. Quando o Brasil flerta com Jair Bolsonaro, está trilhando um caminho semelhante ao percorrido pelo país vizinho.

Paradoxalmente, temos uma imensa responsabilidade e um cuidado extremo com o sistema financeiro. Nosso Banco Central é um dos melhores do mundo, assim como o sistema adotado é um dos mais lucrativos e seguros do planeta. Caso levássemos para a segurança pública 30% da competência aplicada às finanças, a situação no País seria muito melhor.

Nossas elites se omitem quando não percebem o dano que a insegurança pública causa à economia. Nosso turismo é ridículo perto de nossas potencialidades. Pessoas deixam de sair de casa por medo de assalto. Empresários dos ramos relacionados ao turismo deveriam ser os primeiros a se mobilizar para melhorar a segurança no Rio de Janeiro, por exemplo.

Existem ainda duas tradições gravíssimas: a apologia da cultura do crime e a criminalização da atividade policial. O policial, em princípio, é considerado um problema, até que se precise dele. Há um enorme preconceito, em especial em relação à Polícia Militar. É verdade que quase todos os dias se noticiam mortes acidentais de cidadãos por causa de confrontos com policiais, mas desqualificar a atividade é ser contra o Estado de Direito.

As autoridades tampouco cumprem o seu papel. A polícia prende, a Justiça solta. E milhares de presos aguardam julgamento há anos: em um terço das prisões 60% dos presos estão nessa situação. E não há a devida indignação a esse respeito. O debate é enviesado, como no recente episódio do indulto de Natal.

A distribuição de salários dentro do sistema é absolutamente desproporcional. Compare-se o salário médio de um policial militar com o de um promotor. O Ministério Público, como defensor da sociedade, deveria ser mais atuante no que diz respeito a essas distorções. Verbas postas à disposição pelo governo federal não são usadas pelos Estados por falta de planejamento e excesso de burocracia. Apenas 4% dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional foram utilizados em 2016. É incrível a omissão e incompetência dos Estados, que não sabem administrar seus respectivos sistemas prisionais nem sequer utilizar as verbas federais disponíveis para a segurança pública.

A Força Nacional, cuja concepção é muito boa para a nossa realidade, carece de recursos, de pessoal e de maior institucionalização. Iniciativa para melhorar esse quadro foi arquivada pelo Congresso. Tampouco há investimento significativo no sistema de inteligência, apesar de avanços recentes, com maior engajamento dos serviços de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal no combate ao crime organizado.

O Congresso demora a dar a devida resposta à questão. Temos iniciativas que deveriam ser postas em votação, como a proposta de emenda constitucional que estabelece para a segurança pública competência comum da União, de Estados e municípios. Deveríamos refletir sobre a unificação das Polícias Militar e Civil. Outra iniciativa é a criação de um sistema único de segurança pública, nos moldes do SUS, que integraria políticas, recursos e ações sob a supervisão do Ministério da Justiça ou de um Ministério da Segurança Pública. Tais propostas tramitam lentamente.

Devemos ir além e envolver municípios e comunidades em iniciativas como as que se veem, por exemplo, no Chile. Destaco a Segurança Ciudadana da Municipalidad de las Condes, que recentemente começou a utilizar drones para ampliar a vigilância da região. O desperdício de recursos do Fundo Penitenciário Nacional é uma prova de que não falta dinheiro. O que falta é planejamento e vontade política. Mas falta, sobretudo, participação da sociedade civil no debate e na alocação das verbas tanto da segurança pública quanto das Forças Armadas.

Vivemos tempos de guerra civil. E não é de hoje. Na guerra civil da Síria morreram, em 2016, cerca de 60 mil pessoas, menos do que no Brasil no mesmo período. A imagem das balas traçantes nos morros do Rio na virada do ano nos remete à guerra que estamos vivendo. E combatê-la é responsabilidade de todos. A questão, sob todos os pontos de vista – cultural, econômico, social e político –, até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece.

* Murillo de Aragão é advogado, consultor, cientista político, professor, é doutor em sociologia pela UNB

 

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