O Museu Nacional é o símbolo do descaso do País, do dinheiro desperdiçado em malas obscenas, das prioridades tortas de um país que prefere gastar na manutenção de estádios ou nos aumentos de salários para servidores
Começa com um ponto de cegueira no centro do campo visual, geralmente em um olho apenas – ou mais marcante em um dos dois olhos. Em seguida, transforma-se numa meia-lua cintilante de bordas irregulares que se alarga aos poucos e se move lentamente para a periferia do campo visual. Não há dor, apenas o incômodo de ver algo que lá não está. Quando a meia-lua em zigue-zague está prestes a sumir, ela brilha com força, prenunciando a agonia pulsante, geralmente em um dos lados da cabeça. Durante a aura, ainda é possível espantar a enxaqueca com um forte analgésico. Contudo, uma vez instalada a dor que a sucede, tudo está perdido.
O título desse artigo faz referência ao primeiro livro do neurologista e escritor Oliver Sacks, falecido em 2015. Trata-se de meu favorito em sua vastíssima e erudita obra por abordar um mal que afeta tanta gente.
Queria poder dizer que o Brasil ainda está nesse preâmbulo das auras, que ainda dá tempo de frear a agonia. Não é o caso. Entre o voto de Fachin no TSE, o incêndio que destruiu o Museu Nacional, rumores sobre mais greves de caminhoneiros, e o tempo de TV que se inicia, vejo a desordem instalada. O ministro do TSE e do STF usou um conselho de peritos externos ligado à ONU como justificativa para seu voto a favor da candidatura do ex-presidente Lula.
Nesses tempos em que ninguém mais se interessa por buscar fatos, o conselho virou sinônimo da organização internacional na cabeça de muitos, inclusive na dos oportunistas que querem ver na vitimização de Lula motivos para atiçar a balbúrdia da campanha eleitoral. Entre esses há quem apoie o PT e quem se posicione como anti-PT. Arrisco dizer que tivesse o processo de investigação, julgamento e condenação de Lula caminhado mais lentamente, talvez a ideia de que Lula é um preso político, uma vítima do sistema do qual ele próprio se beneficiou, estivesse esvaziada. Quiçá isso tivesse atenuado os extremismos de todos lados. Mas a aura passou a toque de caixa.
O Museu Nacional é o símbolo do descaso do País, do dinheiro desperdiçado em malas obscenas, das prioridades tortas de um país que prefere gastar o pouco que resta das contas públicas em frangalhos na manutenção de estádios de futebol obsoletos, ou nos aumentos indesculpáveis de salários para certas categorias de servidores públicos. Inevitavelmente, a tragédia do Museu Nacional será politizada por todos os lados – para falar mal dos governos anteriores, para apontar os erros do teto de gastos, para a demagogia torpe dos “privatizacionistas” custe o que custar. O povo, perdido e indignado ante o paupérrimo elenco de candidatos, estará à mercê da cacofonia.
A cacofonia haverá de aumentar com o tempo de TV. Exemplos disso já se vê, com a imagem da menina de olhos fechados, a bala prestes a entrar em sua têmpora. A imprensa não tem conseguido impor nenhuma ordem nesse estado geral de desordem, pois já não consegue se posicionar com clareza ante os desafios do País. Em tempos de polarização extrema, a imparcialidade é posta em xeque – vi e continuo a ver isso de muito perto, numa democracia supostamente madura, a democracia americana. Confesso que, diante do descrédito que contamina a imprensa mundo afora, não tenho ideia do que deveria estar sendo feito de forma diferente.
O que sei é que ataques seguidos a candidatos cujas posições retrógradas instilam a sanha de desqualificá-los já não funcionam. Ou, têm o efeito reverso: seus eleitores sentem-se pessoalmente atacados pela imprensa, o que aumenta sua mobilização. Isso vale também para os candidatos que escolherem essa como a estratégia principal de suas campanhas. Indignação e raiva poderiam ser contidas com sobriedade e a clara articulação de propostas sobre temas caros ao povo brasileiro. Novamente, a aura já passou.
Assim entramos no pior período, o da enxaqueca debilitante, da dor pulsante que não reponde a qualquer medicamento, que precisa de tempo para passar. Às vezes, esse tempo é curto – dura somente alguns dias. Outras vezes, entretanto, o tempo é longo ou não passa. Já não creio que 28 de outubro marcará o fim.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University