Monica de Bolle: Quando a natureza se revolta

Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam tenha permitido sensação de normalidade.
Foto: Welington Pedro de Oliveira/Amazonas Atual
Foto: Welington Pedro de Oliveira/Amazonas Atual

Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam tenha permitido sensação de normalidade

Em 2005, o geógrafo e historiador Jared Diamond escreveu Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso . Há muitos anos, tive a oportunidade de conhecê-lo em Port Moresby, capital da Papua-Nova Guiné. Na época, ele passava ao menos metade do ano no arquipélago que sempre o fascinou tanto. A obra de 2005 é um estudo sobre como as sociedades entram em colapso político e econômico, transformando-se quase repentinamente de grandes civilizações em pequenas aldeias esparsas — às vezes nem isso. Do estado americano de Montana à civilização maia, de Ruanda à China, da Austrália ao Camboja e o esplendor de Angkor, que visitei em duas ocasiões, Diamond tece enredo eloquente e avassalador sobre como o desprezo em relação à natureza pode levar à ruína. O ponto de partida é a Ilha de Páscoa, caso que o autor afirma ser “o exemplo mais claro de uma sociedade que se autodestruiu ao explorar à exaustão seus recursos naturais”. Ao contrário de outros casos estudados, não houve na Ilha de Páscoa interferência de conflitos ou mudanças climáticas repentinas que pudessem explicar o colapso. Como indagara um dos alunos de Diamond, “o que deveria estar passando pela cabeça do nativo que cortou a última árvore da ilha?”.

O autor tenta dar uma resposta a essa pergunta no fim do livro, quando levanta algumas teses. Talvez muitas civilizações tenham falhado em antever o impacto das consequências futuras de seus atos. Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam ao longo de muitos anos tenha permitido sensação de normalidade, de que, apesar de tudo, haveria adaptação política, econômica e institucional às mudanças provenientes das ações adversas sobre o meio ambiente. Talvez o poder político desproporcional daqueles que não estavam sendo diretamente afetados pelas mudanças tenha servido como respaldo para promover espécie de mau comportamento racionalmente justificado por aqueles que usavam ou tinham o poder de administrar os recursos ambientais.

“TALVEZ EXISTA ELEMENTO IRRACIONAL NA DESTRUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE, REFLEXO DA BUSCA IMEDIATA POR GRATIFICAÇÃO EM DETRIMENTO DE QUALQUER CONHECIMENTO A RESPEITO DOS ESTRAGOS FUTUROS”

Dado o avanço da pesquisa sobre mudanças climáticas e destruição ambiental hoje — ao contrário do passado de várias civilizações estudadas por Diamond —, os motivos irracionais são mais convincentes do que os potencialmente racionais.

Escrevo tudo isso para dizer algo sobre os retrocessos do governo atual. Trata-se de governo muito esquisito, mesmo sem entrar no (de)mérito de suas idiossincrasias. De um lado, tenta promover mudanças econômicas ambiciosas e urgentes, ainda que ajustes nas propostas de reformas sejam necessários. Confesso que aguento o debate sobre o que deve ser alterado na proposta de reforma da Previdência, mas já não suporto a repetição do óbvio: o Brasil tem de fazê-la de alguma forma, e, não, ela não haverá de fazer “chover investimentos” no país. O ministro da Economia está cumprindo seu papel ao tentar destilar otimismo, mas ele bem sabe que a situação está complicada e que os investidores externos têm muito com o que se preocupar no momento atual antes de pensar em deslocar recursos abundantes para o Brasil. A esquisitice do governo está em, de um lado, ter gente competente trabalhando nos temas econômicos e, de outro, ter gente absolutamente desqualificada para tratar de outros temas — educação e meio ambiente, por exemplo.

Leio que em maio deste ano o desmatamento da Amazônia alcançou o maior nível desde que o atual sistema de monitoramento foi instituído. Leio as preocupações de que o governo Bolsonaro tenha dado passe livre para que atividades ilegais levassem à perda de 739 quilômetros quadrados de floresta durante o último mês. Esse número é quase 100% maior do que o observado em maio de 2016. Durante a campanha de 2018, Bolsonaro prometera acabar com o sistema de multas ambientais do Ibama, que, dizia, atrapalhava empresários e produtores brasileiros. Em abril, Bolsonaro assinou decreto que desautoriza a atuação independente dos fiscais responsáveis pelas multas ambientais, essencialmente tornando o trabalho do Ibama irrelevante. E, é claro, há a cereja enrugada do bolo: a ação de improbidade administrativa devido à alegação de manipulação de mapas de manejo ambiental do Rio Tietê pelo atual ministro do meio ambiente quando era secretário dessa pasta no governo de São Paulo durante a gestão de Geraldo Alckmin.

A natureza haverá de se revoltar ante tamanhos maus- tratos e descaso. O que estará passando pela cabeça daquele que vier a derrubar as últimas árvores da Amazônia?

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics

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