A crise humanitária exposta pela Covid-19 deixa em evidência a extrema vulnerabilidade em que vive uma parte muito expressiva da população brasileira
Há poucos dias, foi sancionada a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) de R$ 600 por mês, a serem pagos durante 3 meses prorrogáveis. Como eu já havia escrito neste espaço, a RBE tem por objetivo atender pessoas que não poderiam permanecer em casa para se proteger da epidemia caso não houvesse um programa de governo que as sustentasse durante o período de necessário distanciamento social. Embora a RBE em forma atual seja um benefício temporário, há muitos motivos para torná-la permanente.
O Brasil é um país espantoso. Segundo dados do IBGE, cerca de 50% dos trabalhadores com carteira assinada recebem entre um e dois salários mínimos, enquanto 80% recebem menos de dois salários mínimos. Apenas 10% dos trabalhadores formais ganham mais de R$ 3 mil por mês. De acordo com cálculos feitos por Marcelo Medeiros, metade da população brasileira vive com menos de R$ 1.000 por mês. Estamos falando de cerca de 100 milhões de pessoas que recebem tão somente cerca de um salário mínimo mensal per capita.
Agora, considerem: de acordo com o IBGE, 70% dos redimentos das famíllias de baixíssima renda são destinados a alimentação, transporte e moradia. Ou seja, a maior parte do fluxo mensal dessas pessoas é usada para a subsistência mais básica. Não estão incluídos gastos com vestuário, medicamentos ou itens de necessidade básica para cuidados pessoais. Essas pessoas vivem sem qualquer colchão de segurança, o que significa que, se o chefe de família adoece ou se há algum gasto extraordinário no mês, não há espaço no orçamento mensal para absorver o ocorrido.
Reflitam por um momento sobre isso. Em nosso país há cerca de 100 milhões de indivíduos que vivem na mais precária condição econômica, algo que muitos de nós não têm a capacidade de contemplar. Imaginem a diferença que faria na vida dessas pessoas receber uma transferência de renda sem qualquer condicionante todo mês. A renda básica permanente, pensada desse modo, é mais do que uma ajuda econômica, um assistencialismo. Ela confere dignidade.
Há quem se oponha à renda básica permanente argumentando que ela seria um desestímulo ao trabalho. Entendo o argumento se estamos tratando de pessoas com renda mais elevada do que o montante módico que mencionei anteriormente. Contudo, nem mesmo esse argumento encontra respaldo na literatura acadêmica existente. De acordo com vários estudos, o efeito de programas de transferência de renda sobre os incentivos ao trabalho são, na melhor das hipóteses, ambíguos. No caso brasileiro, quem em sã consciência realmente acredita que alguém que já vive com tão pouco vai deixar de trabalhar porque passou a receber um complemento do governo? A ideia é quase estapafúrdia.
Portanto, vamos ao outro lado da questão: quanto custaria esse benefício incondicional para os cofres públicos? Se 100 milhões de pessoas recebessem uma renda básica de R$ 600 mensais, o montante total no ano alcançaria cerca de 10 pontos percentuais do PIB, valor bastante alto. Com R$ 500 mensais, ou metade do salário mínimo, o custo cai para 8 pontos percentuais do PIB. Com R$ 350 mensais, ou um terço do salário mínimo, o custo seria de pouco mais de 5,5 pontos percentuais do PIB. Evidentemente, parte do gasto com a renda básica é revertido para os cofres públicos na forma de receitas mais altas provenientes de um impulso ao consumo. Afinal, são as pessoas de renda mais baixa que consomem mais como proporção da renda — o que os economistas chamam de propensão marginal a consumir.
Essa população não apenas sofrerá os efeitos mais diretos da epidemia e da crise econômica, mas tais efeitos serão prolongados dadas as curvas epidemiológicas e o curso da doença cujos dados estamos a observar. Mas a defesa da renda básica permanente transcende a crise humanitária que atravessamos.
De uma ótica mais pragmática, a renda básica permanente contribui para a estabilidade da economia e a cidadania na democracia. Já da perspectiva dos valores que compartilhamos, é uma questão de justiça, inclusão e liberdade nesse país tão profundamente desigual que é o Brasil. Chegou o momento de tratar desse tema com a importância e o senso de urgência que ele sempre mereceu.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins