O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido
Há doze meses, o Brasil não imaginava que um ano depois estaria em seu pior momento da pandemia. Há nove meses, o Brasil pensava que tudo haveria de se resolver por si só, sem que qualquer ação real fosse tomada. Há seis meses, o Brasil achava que o pior tinha passado. Há três meses, o Brasil cogitava que 2021 seria o ano da retomada. Durante todo esse tempo o país não se deu conta do quão preso estava e está aos seus traumas. O Brasil é um país no futuro do pretérito. E essa é mesmo a imagem perfeita, pois que o tempo verbal expressa a ideia de um futuro construído em um momento passado e ligado a ele. O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido.
Em 1985 o Brasil não imaginava que em 2021 estaria se debatendo com o espectro da ditadura. O golpe militar de 1964 iniciou a ditadura de duas décadas que deixaria um rastro de destruição cujo legado conosco está até hoje. Morte, tortura, crises de dívida, crises externas, fome, pobreza, desigualdade, hiperinflação. Hiperinflação, aí está um dos motivos para que o país permaneça preso nesse passado que o atormenta. Tudo é motivo para pensar na hiperinflação. A crise externa de 1999 trouxe à tona o fantasma da hiperinflação, que tornaria a assombrar na crise externa de 2002/2003. Mas, apesar dos desequilíbrios e problemas, hiperinflação não houve. O Brasil se pouparia dos temores hiperinflacionários ao longo de boa parte dos anos 2000, e o espectro não surgiria sequer em 2008, ano da crise financeira internacional. Na verdade, os temores hiperinflacionários só voltariam em 2015, quando os abalos da política econômica de Dilma Rousseff ganharam expressão em dados e se fizeram sentir na vida. Novamente, os temores seriam frustrados. Escrevo estas palavras como alguém que também temeu a hiperinflação em todas essas ocasiões sem saber indicar ao certo o porquê. Afinal, trauma é trauma.
Pessoas têm traumas. Países, compostos por pessoas, têm traumas. O trauma do Brasil é a longa convivência com a hiperinflação para aqueles que dela se lembram. E há muita gente que se lembra dela. O trauma da Argentina, outro país que conviveu com a hiperinflação mais ou menos no mesmo período, ainda que por menos tempo, não é a hiperinflação. O trauma argentino é a crise da dívida de 2001, que o país insiste em reviver não somente na memória. Não falo da Argentina por acaso. Quem viveu a hiperinflação certamente se lembra do “efeito Orloff”, a peça de publicidade da vodka que pregava “eu sou você amanhã”. O Brasil viveu no futuro do pretérito com a Argentina, a Argentina viveu nesse mesmo tempo verbal com o Brasil. Até que chegaram os anos 90 e o efeito etílico se desfez com o Plano Real. Contudo, nem o Plano Real foi capaz de apagar o trauma.
Estamos em 2021, no meio de uma pandemia: a pior do século XXI e apenas comparável em escala à do início do século passado, a gripe espanhola. A atual pandemia desarticulou tudo. Cadeias de produção foram abaladas, empregos foram perdidos, empresas e negócios foram obrigados a se reinventar. Ainda que a imagem da guerra não seja a ideal para pensar a crise humanitária proveniente da covid-19, ela serve para que pensemos na inflação e na sua versão mais severa, a hiperinfllação. Como mostram os exemplos históricos, guerras afetam cadeias de produção, o suprimento de insumos, o fornecimento de serviços sem os quais algo não pode ser produzido. Por essas razões, desponta a escassez de bens. A demanda por muitos bens e serviços também cai quando há guerras, afinal, há um empobrecimento geral em meio à destruição, mas há certos produtos que as pessoas não podem deixar de consumir. A escassez de oferta, nesses casos, ocasiona inflação. O raciocínio pode ser estendido para a pandemia. Se países reduzem a exportação de determinados produtos, se as medidas sanitárias interrompem o suprimento de determinados bens ou causam a ausência de alguns serviços, cadeias de produção serão abaladas. Preços irão subir, como vimos ocorrer com os preços de alimentos no Brasil e no mundo. Essa inflação é inerente à pandemia, como é inerente às guerras. O medo de que se descontrole é justificável? Em certa medida, é. Mas não pelos motivos articulados no Brasil.
O medo da hiperinflação manifesto no Brasil, hoje, está ancorado na premissa de que estamos de volta ao passado. Ainda que assim pareça quando ouvimos o presidente da República e o uso corrente das palavras “golpe” e “militares”, o momento é outro. O país está sem lideranças no meio de uma pandemia que ceifou cerca de 3 milhões de vida no mundo todo e mais de 320.000 no Brasil. Esse país sem lideranças, que faz asfixiar e morrer, lembra o terrível passado ditatorial, mas não é igual a ele. Em alguns aspectos, é pior: foram mais mortes evitáveis em pouco mais de um ano do que ao longo de todo o período da ditadura. Em outros sentidos, não é nem melhor, nem pior, mas diferente. O Brasil está à deriva não porque sofreu uma crise de dívida externa, porque as taxas de juros globais estão subindo, ou mesmo porque não sabe controlar o déficit público. O Brasil está à deriva porque não adotou qualquer das medidas necessárias para combater a pandemia e sustentar a economia. Não planejou a campanha de vacinação, resistiu e continua a resistir às medidas de isolamento e quarentena, inventou uma data fictícia para o término do estado de calamidade, não impediu o desmantelamento das cadeias de produção por meio do apoio a pequenas e médias empresas. Fez o auxílio emergencial, é verdade. Mas o desfez para agora pôr no lugar algo pior por medo, em parte, da hiperinflação que não existe.
Nos Estados Unidos, de onde escrevo, mesmo Donald Trump adotou medidas para impedir o desmantelamento das cadeias de produção. Sua adoção evitou uma alta generalizada de preços, embora alguns produtos estejam hoje muito mais caros do que há um ano. Nem todo desmantelamento pôde ser evitado, pois uma parte é atrelada ao comércio internacional, e este também foi impactado. Mas a comparação faz ver que a realidade é que, se hoje o Brasil está preso no futuro do pretérito inflacionário, as causas não são o auxílio emergencial, nem o déficit e a dívida mais elevados. As razões estão no desprezo pelo papel do Estado na contenção de uma crise sem precedentes, o que nos põe em uma posição curiosa: o Brasil vive o trauma inflacionário não devido a um Estado excessivamente intervencionista, mas devido a um Estado ausente.
Diante desse descalabro, não há discussão de conjuntura que faça sentido. Dela, portanto, tomo a liberdade de me ausentar por tempo indeterminado.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.