Escolha número infinito de economistas brasileiros com passagem pelo mercado financeiro e formação tradicional. Peça para produzir um texto de 4 mil caracteres com espaços. Todos defenderão as reformas, a manutenção do teto de gastos, a importância da responsabilidade fiscal
Deu na BBC. Em 2020, o risco de morrer de Covid-19 no Brasil foi três vezes maior do que no resto do mundo. Os cálculos, feitos pelo economista Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dimensionam aquilo que muitos de nós já sabemos: no Brasil, prevalece a visão torpe de que a economia é mais importante do que qualquer outra coisa, como se a economia pudesse dispensar essas outras coisas.
Enquanto o resto do mundo convergiu para o entendimento acertado de que a saúde é soberana e que ignorá-la, sobretudo o seu caráter público, equivale a remar em direção ao colapso, tal lição passou longe do Brasil. Mas isso não é sequer o mais estarrecedor. O mais estarrecedor é que hoje, na fase mais crítica da pandemia, com as três variantes virais que assombram o mundo em circulação no país, nada mudou.
No Brasil, tudo se engessa com o tempo, nada se molda a ele. O Brasil é um lugar espetado no tempo, rígido, imóvel.
Dia desses, instigada por algo que alguém escreveu nas redes, fiquei pensando no glossário dos economistas brasileiros — os que têm colunas em jornais de grande circulação. Hoje não há ninguém que escreva nessas publicações e não gaste linhas falando em “responsabilidade fiscal”, “manter o teto de gastos”, “reformas”, “déficit fiscal”, “dívida pública elevada”, “riscos inflacionários”, “confiança”, “expectativa”. Trata-se de uma liturgia da mesmice. Veio-me à mente o Teorema do macaco infinito. Sabem qual é? Aquele que diz que um macaco que tecle de modo aleatório por um período infinito de tempo quase certamente produzirá qualquer tipo de texto, até as obras completas de Shakespeare. Acham inverossímil? Pois o teorema possui prova matemática.
No caso do economista, ele assume forma bem mais simples. Escolha número infinito de economistas brasileiros com passagem pelo mercado financeiro e formação tradicional — tradicional, conforme uso a palavra aqui, é sinônimo incongruente de “liberal”. Ponha todas essas pessoas diante de infinitos teclados e forneça-lhe os termos e trechos listados no parágrafo anterior. Em seguida, peça aos infinitos economistas para produzir um texto de 4 mil caracteres com espaços — o tamanho-padrão em jornais impressos. Quase certamente todos os textos escritos serão absolutamente idênticos.
Todos defenderão as reformas, a manutenção do teto de gastos, a importância da responsabilidade fiscal. Todos afirmarão que o déficit e a dívida elevados inevitavelmente aumentarão os riscos inflacionários. Caso você, leitor, ouse pedir aos infinitos economistas que tratem também do auxílio emergencial, haverá de receber infinitos textos idênticos apontando os enormes riscos de reinstituí-lo. O auxílio haverá de aumentar ainda mais o déficit, a dívida pública, dizimar a confiança dos investidores internacionais e provocar expectativas negativas quanto ao futuro do país. Não é hora de falar em auxílio emergencial, concluirão.
Não vou tentar provar matematicamente o Teorema do economista infinito nessa coluna pois faltará espaço — afinal, disponho de pouco mais de 4 mil caracteres com espaços. Mas insistirei, para quem ainda tiver paciência, que leia o óbvio pela enésima vez. O Brasil atravessa o pior momento da pandemia. Sistemas de saúde estão colapsando em vários estados do país. As mortes se amontoam e variantes mais transmissíveis do vírus circulam sem qualquer tentativa de contê-las. Há, portanto, uma calamidade. O óbvio seria decretar estado de calamidade.
Com tal decreto em mãos, novas quarentenas seriam instituídas em diversas localidades país afora. Recursos seriam destinados para a Saúde com maior liberdade, já que, com o decreto, o teto de gastos estaria suspenso. As medidas econômicas para apoiar as de saúde pública, como a ressureição do auxílio emergencial, poderiam ser adotadas. Desse modo, teríamos alguma chance de evitar o colapso tal como conseguimos fazer no ano passado, e lembro que a queda do PIB provavelmente será bem menor do que se imaginava por causa do auxílio emergencial.
Contudo, acredito que não faremos nada disso. Acredito que, por ora, o Brasil espetado no tempo é compatível tão somente com o Teorema do economista infinito. A vantagem? O Teorema do economista infinito, no futuro, não vai requerer uma equação sequer. Sua prova estará na catástrofe brasileira. Q.E.D.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins