Ressuscito a era Dilma e a época áurea da substituição de importações por uma razão: há muitos motivos que podem levar a mudanças políticas traumáticas
O Brasil e, de modo mais geral, a América Latina são profundos conhecedores das mudanças traumáticas de regimes políticos. Para que fique claro, não considero a mudança de Mauricio Macri para Alberto Fernández recém-ocorrida na Argentina “traumática”, ainda que o país vizinho esteja novamente engalfinhado numa crise econômica. As mudanças traumáticas a que me refiro são os golpes militares dos anos 1960 e 1970 e, na história recente brasileira, o impeachment de Dilma Rousseff.
Como tenho abordado neste espaço, estou estudando a volta do nacionalismo econômico e tenho me aprofundado em estudos de caso selecionados desde o início do século XX. Recentemente, andei relendo a literatura sobre a industrialização por meio da substituição de importações (ISI), com um olhar especial para os casos do Brasil e da Argentina nos anos 1940 e 1950. O estudo de medidas de cunho nacionalista no âmbito da ISI me levou às leituras sobre a extensão dos problemas econômicos causados por esse modelo de desenvolvimento — industrializar substituindo produtos importados — e às relações entre esses problemas e a primeira fase de mudanças traumáticas na região durante o pós-guerra. Há muitas formas de analisar a ISI. Mas o pensador que melhor definiu os problemas desse modelo de desenvolvimento, tão disseminado na região, foi o economista e cientista social Albert O. Hirschman. O alcance de sua análise se deve, primeiro, a sua nítida abertura de pensamento e aversão ao reducionismo. O modelo da ISI, ao contrário do que muitos afirmaram nos anos 1960 e 1970, não sofreu um “esgotamento”, conforme analisou Hirschman. Fosse assim, as políticas que Dilma ressuscitou — os campeões nacionais com dinheiro do BNDES e a preocupação extrema com a desindustrialização, suscitando ações que muito remetiam ao passado — não teriam tido o apoio temporário do empresariado industrial brasileiro.
Para viabilizar a ISI foi preciso manter, durante muito tempo, uma taxa de câmbio real sobrevalorizada. Isso garantia que os bens de capital importados necessários para a indústria que se queria desenvolver permanecessem relativamente baratos, ao mesmo tempo que transferia recursos das exportações de produtos primários para os novos setores industriais nos anos 1940 e 1950. Contudo, uma moeda sobrevalorizada acaba dificultando o financiamento do déficit externo, o que leva a um ciclo interminável de crescimento seguido de severas crises. Essa situação foi importante para impulsionar a ideia de que era necessário combater “governos populistas que flertavam com o socialismo”. A visão simplista e, portanto, atraente era motivada pelo enorme envolvimento do Estado na economia para sustentar as políticas de promoção industrial, levando ao desenlace traumático da remoção de governos “simpatizantes do Estado”. Em muitos casos, os regimes militares que lhes sucederam também se mostraram, no entanto, simpatizantes do Estado.
Algo semelhante se passou com Dilma. Devido a suas políticas econômicas desordenadas, a moeda brasileira havia sofrido sobrevalorização de quase 20% às vésperas do processo de impeachment. A inflação alcançara quase 12%, e, ainda que o Brasil tivesse a capacidade de evitar as graves crises externas dos anos 1970, 1980 e 1990, os desequilíbrios fiscais impediam que se amenizasse a brutal recessão. O resultado foi que os empresários que até então haviam dado apoio às políticas da equipe econômica o retiraram, ampliando a fragilização política da presidente, já evidente em suas dificuldades de negociar com o Congresso e no avanço da Operação Lava Jato. O resultado de tudo isso está aí, espalhado no Twitter e estampado nas mãos que imitam arminhas.
Às vezes problemas de ordem puramente externa se somam aos de ordem interna, provocando uma espécie de tempestade perfeita para uma reviravolta política. O modelo de desenvolvimento escolhido, com todas as suas ramificações, ajuda, contudo, a explicar tantos traumas e abalos na América Latina. O nacionalismo, seja nas políticas de industrialização tardia, seja nas tentativas de reindustrialização, não ajudou o Brasil ou a América Latina. Sua antítese, na forma do ultraliberalismo guediano paradoxal, aquele que libera geral, mas mantém a economia fechada, tampouco o fará.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins