O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, com um futuro quadro de depressão econômica
Monetizável rima com aplicável, inegável, e formidável. Formidável não no sentido de fantástico ou admirável, mas de algo que assumiu proporções excessivas, desnecessariamente. Entende-se que haja confusão, pois economia monetária é um tema árido por excelência, e é inegável que ela acontece no momento. O que não falta nos jornais brasileiros são artigos sobre “monetização” em suas diversas conotações, o que, paradoxalmente, torna a confusão em torno do termo visivelmente monetizável. O leitor, afinal, compra o jornal e lê sobre a confusão. Nos atos de comprar e ler a torna moeda corrente, por assim dizer.
O termo “monetização” é aplicável a variadas circunstâncias. Por exemplo: quando o banco central norte-americano – o Fed – compra títulos de longo prazo do Tesouro nos mercados secundários, a operação conhecida como “quantitative easing” (ou afrouxamento quantitativo), ele “monetiza”. O processo se dá da seguinte forma: de um lado, o Fed entra no mercado como comprador; de outro, um banco entra como vendedor. O encerramento da transação se dá com a aquisição de títulos pelo Fed, que se tornam parte do seu ativo, enquanto o depósito do banco no próprio Fed é creditado no montante da compra. Esse depósito faz parte do passivo do Fed, ele constitui as reservas bancárias que, por sua vez, compõem a base monetária. O aumento das reservas bancárias decorrente dessa transação eleva a base monetária, o que significa que houve uma “monetização”. Essa monetização, entretanto, fica circunscrita ao balanço do Fed – não há mais dinheiro circulando na economia em decorrência dela. Portanto, não há risco de inflação proveniente dessa ação, como já está mais do que comprovado. Isso significa que esse tipo de monetização é plenamente compatível com um regime de metas inflacionárias.
Em breve, o Banco Central (BCB) brasileiro poderá fazer essa operação, pois a PEC 10 de 2020 o permite. O uso de “quantitative easing” é um dos instrumentos adicionais de que os bancos centrais dispõem para combater os efeitos agudos da crise que hoje atravessamos. Não há qualquer problema em fazer isso no contexto brasileiro, pois, como dito, a operação se limita a inflar o balanço do BC sem ameaças ao regime de metas inflacionárias.
Mas consideremos o regime de metas inflacionárias. O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, como tenho escrito nesse espaço. Vamos enfrentar um quadro de depressão econômica, com possível queda de dois dígitos do PIB em 2020, acompanhado de um processo deflacionário. Deflações são situações de quedas generalizadas do nível de preços: não se trata da queda do preço de um ou outro bem ou serviço, mas de todos os bens e serviços. Essas situações, sobretudo quando se configuram em espirais deflacionárias, isto é, quedas contínuas de preços movidas pela expectativa de que os preços continuarão a cair, são extremamente danosas para a economia. Empresas perdem receita e capacidade de sobrevivência, consumidores perdem renda, governos perdem capacidade de arrecadar. A razão dívida/PIB explode. Trata-se de uma situação de falência econômica múltipla.
Não é exagero dizer que espirais deflacionárias são piores do que as hiperinflações do nosso passado. Com essas se convive, penosamente.
Na situação de espiral deflacionária, um banco central que nada faz não está cumprindo o regime de metas. Afinal, o regime estabelece um piso e um teto para a inflação. Se a inflação acima do teto é um problema, a inflação abaixo do piso, possivelmente em território negativo, é um problema de magnitude igual ou pior. Países que viveram situações deflacionárias mostram a dificuldade de quebrar esse ciclo. Para evitá-lo e cumprir, na medida do possível, o regime de metas inflacionárias, cabe ao Banco Central lançar mão de todos os instrumentos à sua disposição, o que inclui a monetização explícita. Trata-se da emissão monetária para cobrir os déficits do governo, como faz hoje o Banco da Inglaterra (BoE). O BoE o faz não por ser o Reino Unido um país rico e de moeda forte.
Ele o faz precisamente por causa do risco deflacionário que se apresenta. Faz porque tem um regime de metas a cumprir e um compromisso com a população.
É comum que nós, brasileiros, achemo-nos diferentes dos outros também em matéria de economia, e nosso passado inflacionário sustenta essa percepção. Mas sejamos honestos: perante o abismo da deflação, todos somos iguais. Não se olha para o abismo com complacência.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University