Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo está, neste momento, agindo de forma imoral
“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Sem dúvida alguma. E, sim: “tudo passa, tudo sempre passará”. Mas a epidemia não vem em ondas mais ou menos simétricas, como o mar. A epidemia vem em onda forte seguida de outras ainda fortes, em onda moderada seguida de ondas fortes, em onda que tudo varre e ainda pode ser seguida do mais profundo descalabro.
A evolução depende de como os governos se comportam. Também depende de como os governos se comportam dentro da realidade de cada país. Não adianta imitar a Suécia, apostar na imunidade de rebanho e deixar a onda passar. Primeiramente porque não sabemos o que haverá de ser das escolhas da Suécia. Depois, porque o Brasil não é a Suécia. Por fim, porque os suecos estão respeitando o distanciamento social sem quarentena, por conta própria. Trata-se de questão de comportamento.
Muito me preocupam os cenários econômicos. Não por sua extrema gravidade. Eles me preocupam porque muitas vezes se baseiam em premissas equivocadas, como a de que haverá uma primeira onda — essa que estamos atravessando — seguida de onda mais mansa, ou de uma sequência de ondinhas. É este tipo de premissa que escora as projeções do FMI: a onda forte é agora, no segundo semestre haverá outra, mais fraca, e, depois, vida que segue.
Muitos economistas estão seguindo essa linha de raciocínio para justificar suas posições. Alguns resolveram inclusive ignorar já a primeira onda, voltando a apoiar uma agenda de reformas que, francamente, diz respeito a um mundo que não existe mais. Entre esses consta o ministro da Economia brasileiro, que resolveu mudar o tom no momento em que o país entra na fase mais crítica da crise humanitária. Com ele foram os economistas de mercado e todos aqueles que preferem ignorar a realidade. A realidade é que a capacidade hospitalar da cidade de São Paulo está se esgotando.
A realidade é que a taxa de mortalidade no Rio de Janeiro entre os mais pobres já é muito mais elevada do que entre os mais ricos. Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo — nada contra a música, gosto muito — está, neste momento, agindo de forma imoral. Queiram os economistas ou não, há uma dimensão moral nesta crise que não será esquecida.
Se alguém parasse para olhar os dados brasileiros — que estão subnotificados —, observaria que o número de casos no país está subindo rapidamente a cada dia. O número de mortos já é maior do que o da China. Quando vocês estiverem lendo esta coluna, já teremos superado a China no número total de casos. Não estamos na crista da onda, prestes a nela deslizar com a destreza daqueles que o fazem de forma incansável nas praias do Rio. Estamos no pé de uma montanha cujo pico nos ilude. E do pé dessa montanha resolvemos, de uma hora para outra, ignorar nossos mortos, nossos doentes, os do presente e os do futuro, voltando à ladainha das reformas.
Porque soberano é o vírus, não o presidente da República ou o ministro da Economia.
Cadê a renda básica emergencial, que não chega nas mãos das pessoas? E as filas criminosas em frente à Caixa Econômica Federal para sacar o benefício? O que dizer da ausência de repasses fundamentais para os estados e municípios? O que falar do desembolso de apenas R$ 5 bilhões para o SUS até agora? Como se pode pensar em defender a redução de tributação sobre os bancos neste momento? E por que cargas d’água vamos querer avançar com medidas de austeridade contidas nas reformas se o que precisamos é de mais endividamento público para ao menos atenuar a depressão econômica?
O Brasil nunca viu uma deflação. O modo-padrão é logo morrer de medo de inflação, é dizer que não podemos nos endividar porque cairemos na espiral inflacionária de eras passadas. Mas não. Essa não é mais a realidade. A realidade é uma espiral de queda de preços extremamente danosa para a economia, para as pessoas. Nos vídeos que tenho feito para o YouTube tenho explicado o que é uma espiral deflacionária. Para os leitores interessados, recomendo assisti-los, pois, para nós, brasileiros, é algo inédito. Mas não é algo que, nós, economistas, desconheçamos, ainda que alguns não a tenham visto de perto.
Como uma onda no mar? Não. Como um tsunami a chegar no oceano de ignorância deste desgoverno.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins