A matilha que forma com seus filhos parece brava, late e ofende sem trégua
Cem dias de aflição Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
ARNALDO ANTUNES
Esperança? Desespero? Raiva? Indignação? Orgulho? Agonia? Meu sentimento é a aflição nestes 100 dias transcorridos desde a posse de Bolsonaro. Aflição por um país que permanece sem rumo, por um país que se deixou levar pela fúria constante das redes, pelas brigas, pela incivilidade, pela barbárie. Aflição por um país que elegeu um presidente da República que nada conhece além do confronto, pouco importa quem seja o alvo: jornalistas, intelectuais, congressistas, gente comum.
Seguidores fiéis imitam o comportamento vulgar e os gestos ofensivos. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro mostrou que sua ignomínia não tem limites, o que deveria ser causa de profunda aflição e angústia para quem realmente se ocupa de preocupar-se com o Brasil.
Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro viajou para os Estados Unidos e ajoelhou-se perante Trump. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro viajou para o Chile e insultou as autoridades do país com seus comentários sobre a ditadura de Pinochet. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro foi a Israel e disse a todos que o nazismo é de esquerda, imitando seu vergonhoso ministro das Relações Exteriores, para o profundo constrangimento internacional do país. Nenhuma dessas viagens trouxe qualquer ganho econômico para o Brasil ou mesmo alguma melhoria da imagem do país, a percepção de que há rumo bem traçado para os próximos anos. Nos últimos 100 dias, Bolsonaro permitiu que o Palácio do Planalto divulgasse vídeo abjeto e revisionista sobre a ditadura militar e sobre o golpe de 1964. Os macacos de auditório do Twitter — não tão numerosos, mas bastante barulhentos — rapidamente repercutiram a estupidez e a inominável ofensa às vítimas da opressão que o Brasil jamais condenou como fizeram outros países latino-americanos.
Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro questionou as estatísticas de desemprego como um liderzinho qualquer. Curioso será se resolver questionar o déficit da Previdência.
Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro nomeou um ministro despreparado para uma das pastas mais importantes do governo, a da Educação. Não é mistério para ninguém que o país padece quando o assunto é educação. A dificuldade do próprio presidente da República com as palavras é exemplo de nossas falências. O ministro despreparado foi corajosamente enquadrado pela jovem deputada de 25 anos, Tabata Amaral, formada em astrofísica e ciências políticas pela Universidade Harvard. Amaral foi o bálsamo para a aflição destes 100 dias, deixando entrever um pouquinho de esperança. A outra ministra despreparada, Damares Azul-Rosa Alves, não merece mais do que essa frase.
Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro brigou com congressistas de seu próprio partido, de outros partidos, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Foi por ele repreendido algumas vezes ao não entender que o Congresso é poder democrático independente tão relevante quanto o Executivo — mas fora Bolsonaro quem elogiara Fujimori por ter o presidente peruano fechado o Congresso em 1992, inaugurando o autogolpe. Portanto, de democracia nada entende. Ao instalar o caos nas relações entre o Congresso e o Executivo, ao deixar ressabiados os parlamentares com quem terá de negociar a reforma da Previdência, fez de seu ministro da Economia o Sísifo tupiniquim. Guedes foi encarregado de empurrar as rochas da reforma ladeira acima, mas Bolsonaro haverá de assegurar que voltem ladeira abaixo, já que não entende que só ele pode respaldar politicamente o que muitos esperavam que fosse o principal feito de seu governo. E, mesmo que depois de tudo isso consiga aprovar a reforma da Previdência, restará fazer todo o resto para tirar 13,1 milhões de pessoas do desemprego, para melhorar a segurança do país, para socorrer os estados quebrados, para uma lista infindável de prioridades perdidas na balbúrdia dos 100 dias.
Nestes 100 dias, inflou-se a ideia de que basta a reforma da Previdência para o país voltar a crescer. Mas a Previdência é um ajuste fiscal e, como ajuste fiscal, contracionista no curto prazo. Essa verdade inconveniente e aflitiva está perdida em meio ao pensamento mágico das expectativas que empurrariam a economia.
Cem dias. Sem nada. Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics