Eis o dilema: a oferta de conhecimento como bem público o degrada aos olhos de alguns
A saúde é um bem público, a proteção social também. Bens públicos, na definição dos economistas, são aqueles que são não excludentes e não rivais. O que isso significa? Primeiramente que indivíduos não podem ser excluídos de seu uso e deles podem se beneficiar sem pagar. Em segundo lugar, são bens em que o uso individual não reduz sua disponibilidade para que outras pessoas deles desfrutem. Por fim, bens públicos podem ser desfrutados por mais de uma pessoa simultaneamente. Muitos temas podem ser enquadrados como bens públicos: a conscientização coletiva sobre saúde, questões sociais e ambientais, a manutenção da biodiversidade, o saneamento básico. Além disso, bens públicos estão sempre sujeitos ao problema que economistas chamam de free rider — como bens públicos são gratuitos ou são oferecidos a um preço abaixo do preço “de mercado”, sua utilização pode se tornar excessiva, levando a uma redução prejudicial da oferta, ou mesmo à degradação do próprio bem ou serviço oferecido.
Como saúde e proteção social, o conhecimento é um bem público. Aqueles que se dispõem a dividir o conhecimento que têm sobre determinados assuntos estão sujeitos ao mau uso, ou até à degradação do que compartilham. Trata-se de uma experiência curiosa essa de dividir conhecimento sem pagamento. Como professora universitária, compartilho meu conhecimento com alunos que por ele pagam uma mensalidade à universidade. Como participante do debate público por meio de colunas como esta que tenho em ÉPOCA, também recebo honorário. Contudo, desde que a pandemia eclodiu, eu me senti compelida a partilhar meu conhecimento de forma gratuita, no canal que criei no YouTube. A pesquisa que desenvolvo desde o Ph.D. na London School of Economics trata de crises. Quando trabalhei no FMI, tive a oportunidade de conhecer crises na prática, pensando em soluções para aliviar países. Hoje, leciono sobre crises na Universidade Johns Hopkins. Tenho usado essa experiência para fazer o que jamais imaginaria que faria: transmissões diárias ao vivo sobre temas relativos à crise que atravessamos e sobre o funcionamento da economia de modo mais geral.
A experiência tem sido muito enriquecedora, mas também desafiadora. Enriquecedora pois percebo claramente a ânsia que muitos têm em entender esse momento e em procurar essa compreensão em linguagem que lhes seja acessível. O jargão econômico, afinal, guarda um grande segredo: apesar dos termos técnicos e de assuntos que parecem áridos em primeira mão, a economia trata da vida das pessoas. Todas a experimentam em seu cotidiano, e talvez por isso tantas tenham opinião formada, ainda que não tenham tido qualquer tipo de treinamento “formal”. Considero justa essa posição. Não é preciso ser economista para saber o que é inflação e como ela afeta a vida de cada um. Não é preciso ser economista para entender que, numa crise, como a que vivemos, empregos e salários estão em risco. Contudo, há muitos temas que, quando tratados por economistas, podem se tornar excessivamente herméticos e inacessíveis a muita gente. Remover esse véu tem sido muito gratificante.
No entanto, percebo ao mesmo tempo o desafio de oferecer um bem público. Há quem o menospreze achando que, se está sendo oferecido de graça, a pessoa que o oferece não deve ter formação suficiente. Ou, aqueles que veem no ato de oferecer uma espécie de busca por autopromoção. Ou, ainda, muitos que julgam o conhecimento que você divulga livremente como algo facilmente adquirido por qualquer um, algo do senso comum, algo pretensamente “razoável”.
Não há pagamento, não há financiamento, não há patrocinadores. Portanto, não deve valer muita coisa, não é mesmo?
A crise que atravessamos está desafiando esse tipo de visão e comportamento. Ao desvelar o valor intrínseco e não monetizável de bens públicos, a crise expõe sua importância para a sociedade. Há muito que lamentar, há muito sofrimento. Haverá ainda mais nas próximas semanas e nos próximos meses. Mas façamos uma pausa para vibrar com a valorização dos bens públicos. São eles que tornarão essa terrível travessia mais palatável. E, sobretudo, mais humana.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins