Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro
Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.
A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.
Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.
A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.
Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?
É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University